fbpx

Os cristãos precisam de uma utopia?

Escrito por Arthur Garcia Ferreira Martins, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

Com o pânico social crescente, pensa-se como é possível reverter essa situação. Utopia é o caminho adotado pelo homem moderno, como um ideal de esperança. Meios revolucionários são adotados para buscar a sociedade ideal. Que tem as utopias em comum com o cristianismo? 

O QUE É UTOPIA?

Para compreender o significado da palavra utopia, precisamos remontar ao Renascimento, onde “o homem coloca a si mesmo no espaço da história e considera o mundo como seu domínio.”[1] Deus não é mais, necessariamente, o centro ou o fim da filosofia. Ali, ressurge o pensamento da res publica romana, uma sociedade que é assunto de todos, uma comunidade construída pelo esmero de cada membro. Pela cooperação de cada cidadão, o ideal de harmonia, liberdade e prosperidade pode ser realizado na história[2]. Seguindo este pensamento, “o homem aparece como um ser que é capaz de aperfeiçoar a si mesmo e o mundo. A história se transforma num processo de progresso que sob direção humana é capaz de produzir uma sociedade melhor”[3]. O homem descobriu como se salvar: basta seguir sua humanidade.

Mas a gênese da utopia moderna se encontra, particularmente, à partir da obra escrita por Thomas More, que recebeu o nome de Utopia, em 1516. Tendo como referência a República de Platão, “volta-se a sonhar e pensar na construção de uma sociedade ideal”[4]. Como um exegeta, More aplica os elementos descritos por Platão em sua narrativa, contextualizando-os, aproximadamente, dois mil anos depois. Aqui nasce a mãe das utopias modernas. Na obra Utopia são feitas críticas à desigualdade social e ao parlamento sujeito às normas do rei Henrique VIII. Rafael é alguém que vem da ilha que leva o nome de Utopia. A vida em sociedade é ideal nesta ilha, e há apenas uma condição para habitar nela: crer em deus, qualquer que seja sua religião. Um tipo de fé genérica tem seu lugar para que o homem alcance sua potência. O homem é seu protagonista, e aparece (tendo se libertado da estrutura despótica) como “o criador de um novo mundo”[5] mais feliz, harmonioso, justo, próspero, saudável, erudito e perfeito.

O pensamento utópico é determinado pelo uso de uma avaliação elevada da capacidade humana – sobretudo razão e vontade. “Sem esse homem, no qual o mal parece não estar mais alojado, a Utopia não é possível”[6].

Hans Achterhuis destaca três características centrais no pensamento utópico: viabilidade, conteúdo material e caráter totalitário[7]. Primeiro, construir uma utopia é visto como racionalmente viável. Segundo, nela está “a projeção imanente das condições materiais desejadas”[8]. Terceiro, a utopia é de caráter universal, holística e obrigatória.

O CRISTIANISMO É UMA UTOPIA?

A palavra utopia vem de topos, “o lugar que não existe”. A ilha perfeita que interpreta a sociedade ideal não é real. Devemos perguntar, então, se o cristianismo é real. Cristo é real? Seu Reino é real? Para a teologia liberal, o cristianismo não passa de um jogo de palavras e símbolos que são utilizados para a interpretação da verdadeira realidade. Segundo o pensamento de René Descartes, se a razão pensa sobre algo de modo detalhado, é porque deve existir, logo, ter tantos detalhes acerca do que penso sobre de Deus deve ser o aval para sua veracidade. Para o cristão, Cristo não só é realidade na qual este se apoia como ponto transcendente, mas também o cristianismo é a única verdade sobre o mundo.

Se a utopia é uma abstração que “não precisa ser comprovada empiricamente para ser efetiva”[9], o cristianismo sim. Só é cristão aquele que reivindica ter experimentado a alegria, a justiça, a paz[10 e os poderes[11] da Nova Cidade. O cristão tem na “cidade que existe” a sua referência teleológica, e por isso, reunido na comunidade dos cidadãos do Céu, tem elevada capacidade para desenvolvimento de virtudes morais. O capital moral presente nas comunidades cristãs evidenciam como o cristianismo possui um “espelho” de sociedade melhor. Com melhor, quero dizer um espelho que tem poder de criar pequenas comunidades à luz da Nova Cidade. Enquanto Francis Bacon imaginou a “Nova Atlantis”, o cristão se apegou à “Nova Jerusalém”, que para este, não é utópica, mas real.

O pensamento utópico pressupõe que “aquilo que existe não pode mais ser o ponto de partida”[12]. Está intrínseca uma proposta ontológica. O ponto de partida deve ser algo que “não existe”. A esperança cristã, empiricamente comprovada pela alegria dos mártires, é, em meio à uma sociedade caótica, apontada, em derradeiro, por João. Marcado pelas chagas da injustiça, do isolamento social, da dor e do martírio, ele via a Nova Jerusalém como paradigma de sociedade justa, rica e feliz. Esse paradigma produziu homens de fibra moral que suportaram sofrimentos terríveis (Hebreus 11:33-38) e resistiram à tirania (João Batista).

Fica claro, portanto, que, o cristão não se baseia em lugar inexistente fundamentado na abstração mental. Além disso, o pensamento utópico tende a produzir um desprendimento do presente, e desconsiderar a realidade em detrimento de um ideal inalcançável. O homem moderno, “para alcançar o objetivo utópico, está disposto a tudo. Já que sua utopia é o ideal, ele está disposto a romper com o pacto social entre os presentes para alcançar sua utopia”[13]. O cristão, por outro lado, não recebe essa orientação da projeção que lhe é revelada. O cristianismo traz uma escatologia inaugurada. Já na sociedade que existe, a justiça resplandece em meio à injustiça. Enquanto se espera que Cristo traga consigo a Nova Cidade perfeita, o estilo de vida desta cidade se faz visível no caráter cristão. A ética da vida cristã é amar os inimigos, cuidar do outro. Isso não pode ser feito sem que o homem esteja presente no mundo imperfeito e considere a situação atual da sociedade. O cristianismo incita o homem a produzir seu capital moral para agora, no mundo injusto e desigual, assim como Cristo viveu. O homem é incentivado a agir nas “coisas penúltimas”, esperando pelas “últimas coisas”, a saber, a chegada da Cidade Celestial.

Karl Mannheim afirma que “na utopia, trata-se de representações que influem, de modo transformador, na situação social como ela é” e “não se baseia em um diagnóstico da situação”, “não é capaz de reconhecer corretamente uma condição existente na sociedade”[14]. A utopia não considera a realidade atual, ela desespera-se de como as coisas são. O utópico, ansioso, só pode ver o futuro de como as coisas poderão ser se tudo que existe for destruído e refeito, segundo o espelho da abstração mental. Daí, o espírito revolucionário.

AS DISTOPIAS MODERNAS

O conceito de utopia se desenvolve ainda mais com a chegada do alto modernismo. “Utopia passa a ser uma história de poder, de soberania de Estado”[15]. Para se chegar a esse “mundo novo”, não há outro caminho a não ser por meios estatais, tentando realizar tais representações utópicas. Uma nova ordem social e política é o ponto central da utopia no século XX. Revolução é o nome disso. “Segundo Hannah Arendt, o esforço para estabelecer uma ordem social com violência é o totalmente novo das revoluções sociais”[16].

Assim, “o pensamento progressista foi chamado de secularização das expectativas futuras cristãs […] e passou a ser a legitimação das formas de violência contra o passado e contra o presente”[17]. A descontinuidade é uma marca do pensamento utópico, e assim, em nome do desejado futuro social pode ocorrer a ruptura com os comportamentos e padrões sociais que nos unem concretamente com outros”[18]. Assim se origina a distopia, estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. A distopia é um provável resultado do pensamento utópico, uma vez que o pacto social se torna relativo ao ideal utópico. Catástrofes humanitárias sempre acompanham projetos utópicos, pois estes são apresentados com grande autoridade política e cultural, impedindo à sociedade que ofereça resistência.

CONCLUSÃO

Segundo o cristianismo, construir uma utopia não é visto como racionalmente viável. A maldade humana é pressuposto básico da doutrina cristã. Não é possível construir o paraíso de baixo para cima. Essa tentativa foi feita em Babel e Deus rejeitou. A Nova Cidade desce de Deus, ao invés de ser erguida pelo homem. Segundo, o cristianismo está ciente que enquanto Cristo não habitar fisicamente a Terra, não haverá sociedade plenamente justa, logo, a ausência de condições materiais desejadas: “Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça”[19]. Terceiro, o que o cristianismo vê  como uma realidade de caráter universal, holística e obrigatória em nossos tempos, aponta para os absolutismos catastróficos no século XX.

Sendo assim, o cristão não precisa de uma utopia. Seu modelo de sociedade e ética social está bem referenciado na Nova Cidade que já se faz presente através dele, como seu embaixador. Não há uma fé ingênua no capital moral, embora se reconheça o florescimento humano. A justiça, o respeito, o amor e a tolerância são virtudes morais que podem florescer dentro da sociedade e devem ser evidenciadas para que não haja pânico social, situação em que instituições não funcionam, assim como não há a presença de pessoas que se importem umas com as outras.

Ainda assim, diversas utopias modernas se tornaram em distopias, exatamente devido à sua inviabilidade.


[1] Roel Kuiper, Capital Moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução de Francis Petra Janssen. – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019, p. 55.

[2] Ibidem, p. 57.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem, p. 58.

[5] Ibidem, p. 62.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem, p. 60.

[8] Ibidem, p. 61.

[9] Ibidem, p. 62.

[10] Bíblia Versão Revista e Atualizada, Romanos 14:17.

[11] Idem, Hebreus 6:5.

[12] Roel Kuiper, p. 61.

[13] Zé Bruno, grupo de Whatsapp “Corredor do InC”.

[14] Roel Kuiper, p. 61.

[15] Idem, p. 70.

[16] Idem, p. 71.

[17] Idem, p. 72.

[18] Roel Kuiper, p. 73.

[19] Bíblia Revista e Atualizada, 2 Pedro 3:13.