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Perspectivismo: uma postura epistemológica de unidade para a Igreja

Escrito por Marlon Girardello, estudante do programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

“Até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus…”

Efésios 4:13

INTRODUÇÃO

A pressa em rotular pessoas e ideias tem proporcionado um ambiente de discussões que “geram mais calor do que luz”, vive-se de fato um momento onde o diálogo tem sido enfraquecido e trocado pelo reducionismo da ideia oponente. Há uma busca de tolerância e diálogo que é superficial, devido à superficialidade do conhecimento da posição que se defende e da posição opositora.

Na teologia não é diferente, há discussões que a Igreja carrega há séculos e que ainda gera grandes desavenças. O oponente, de fato, pode não estar sendo bíblico, porém, será que alguma coisa que ele fala não pode ser usado para enriquecer uma posição, mesmo que oposta? Será que o oponente não está demonstrando algo que aparenta ser falso, mas que na realidade é uma visão de uma outra perspectiva? O presente artigo busca demonstrar que o perspectivismo de John M. Frame e Vern S. Poythress é uma posição que deve ser considerada pela Igreja de Cristo no que tange todo tipo de discussão, em busca de se encontrar uma visão mais completa e una do todo, ao mesmo tempo que se mantém fiel às Escrituras.

O CONHECIMENTO DE DEUS

Ao falar-se de teologia, primeiramente é necessário se expor o conhecimento de Deus. O tema é fundamental para certas áreas específicas do ensino bíblico. John Frame inicia seu livro A Doutrina do Conhecimento de Deus com uma afirmação importante sobre Calvino: “Calvino reconhecia o ‘conhecimento de Deus’ como importante perspectiva por meio da qual a Bíblia toda pode ser utilmente entendida, como um proveitoso meio de resumir a mensagem bíblica geral”[1]. Há uma insistência bíblica onde Deus constantemente leva seus leitores a saber e a lembrar que Ele é o Senhor. Deus deseja que todos saibam quem Ele é e que é Senhor sobre todas as coisas, até as autoridades máximas da terra são subordinadas a Ele (Is 49:23). Em Romanos 1:21 vê-se que num sentido, todos conhecem a Deus, porém em outro, há um conhecimento de Deus que é privilégio dos remidos pelo sangue do Cordeiro. Em última análise, o objetivo do cristão é conhecer a Deus e fazer Ele conhecido por todas as nações, tribos e raças (Mc 16:15, Ap 7:9).

Devido a finitude humana, nunca se terá nenhum conhecimento verdadeiramente exaustivo, principalmente no que tange Deus, o máximo que pode-se conhecer Dele é aquilo que Ele próprio escolheu revelar por meio da Bíblia, para a pessoa e seu próximo, como também por meio do mundo que o cerca, ou seja, é sempre um conhecimento parcial do que de fato é.  Não somos Deus, portanto somos finitos, nosso conhecimento é limitado e pode, no máximo, alcançar um das perspectivas da realidade. Segundo Frame, “Os pensamentos de Deus são originais dos quais os nossos, em seu mais alto nível, são cópias, imagens. Portanto, os nossos pensamentos não existiriam à parte da presença pactual de Deus”[2].

Os nossos pensamentos são limitados pelo tempo, os de Deus são incriados e eternos. A consequência disto é a defesa de que um conhecimento mais amplo da realidade depende de uma visão perspectivista, como um objeto que é analisado a partir de ângulos diferentes. Não se pode conhecer a Deus, sem o conhecimento da Bíblia e do mundo. Pode-se dizer também que o conhecimento que temos de Deus determina o modo como conhecemos a Bíblia e o mundo. Esses três conhecimentos estão interligados e dependem um do outro para gerar uma visão mais ampla da realidade.

O PERSPECTIVISMO

Em linhas gerais, o perspectivismo é uma postura epistemológica, isto é, um posicionamento do modo como conhecemos a realidade e como ela é composta por perspectivas.

Em John Frame, o perspectivismo é trino e baseado na trindade, mas especificamente relacionado aos três atributos fundamentais do senhorio divino (controle, autoridade e presença pessoal), destes três atributos são gerados as três perspectivas propostas por John Frame, que são a perspectiva normativa, a situacional e a existencial. Por exemplo, segundo Frame, ao aconselhar pessoas pode-se averiguar três pontos: “O que diz a Escritura?” (normativa), “Qual o problema?” (situacional) e “Como a pessoa está reagindo frente ao problema?” (existencial). Toda decisão ética envolve a aplicação de uma norma em uma situação por uma determinada pessoa. Frame afirma que “O indivíduo e a Escritura são parte integrante da situação, a situação e a Escritura são partes da experiência da pessoa, e uma análise da situação e da pessoa ajuda a mostrar o que a Escritura diz”[3].

A tendência em éticas não cristãs é que essas perspectivas acabam sendo aplicadas de maneira absolutizada, mitigando ou eliminando as demais, pois buscam um absoluto fora da revelação de Deus e então não conseguem sintetizar elas para que possam trabalhar juntas. Frame dá exemplo de John Stuart Mill. Para Mill o comportamento correto podia ser quase totalmente calculado com base nos fatores situacionais. Já para Kant, a lei moral (norma) tinha grande proeminência, ao cabo que as demais perspectivas tinham pouca ou nenhuma relevância. Frame também utiliza do seu tri-perspectivismo no que tange o coração, tendo como perspectivas a afeição, a cognição e a volição, não havendo a mais importante, todas caminham juntas e são igualmente importantes. Esta inclusive é uma característica do perspectivismo: as perspectivas são partes de um todo e carregam o mesmo peso de relevância[4].

Em Vern Poythress, o perspectivismo se apresenta de uma forma um pouco diferente que em Frame, mas de igual importância. Poythress não define especificamente a quantidade de perspectivas que podem ser utilizadas na análise da realidade, mas busca observar que existem múltiplas perspectivas, pois as pessoas não são iguais e enxergam o mundo de maneiras diferentes. Poythress dá o exemplo de um marido e a sua esposa quando vão escolher uma cortina[5], a esposa diz que as cortinas escolhidas são lindas, mas o marido desaprova, pois as cortinas não impedirão a passagem da luz. As pessoas podem estar interessadas em coisas diferentes e, por isso, notam aspectos diferentes do mesmo objeto. O autor de “Teologia Sinfônica” dá outro exemplo quanto a continuidade dos milagres para os dias de hoje, ele propõe pegar os melhores argumentos tanto do lado dos que creem que os milagres cessaram como dos que creem na continuidade e nisso traçar uma visão que possa se utilizar da melhor forma possível das duas perspectivas, em busca de equilíbrio e ressonância bíblica mais ampla.

Porém, tanto Frame como Poythress admitem que há um perigo no perspectivismo que mora justamente na absolutização de apenas uma perspectiva. No caso, por exemplo, de escolas de psicologia, “onde a escola freudiana é tentada a reduzir os seres humanos a animais controlados por impulsos. A behaviorista pode reduzir o homem a uma massa complexa de padrões de estímulos e resposta”[6], os seguidores acabam sendo dominados apenas pela perspectiva pela qual foram treinados para ver. No entanto, a absolutização traz consigo uma vantagem quanto a profundidade e a percepção diferenciada em comparação àqueles que buscam uma visão mais abrangente. Nesse sentido, é necessário aliar a profundidade, em busca de maior percepção, sem absolutizar aquela perspectiva de estudo, entendendo que aquela visão é parte de um todo da realidade temporal que é compostas por múltiplas perspectivas.

O perspectivismo de Poythress quanto a multiplicidade de perspectivas é semelhante a proposta de Dooyeweerd de multiplicidade de aspectos modais da experiência temporal[7]. Assim como abordagem de Frame contempla a abordagem tri-perspectivista de coração encontrada nas Escrituras, em Agostinho de Hipona e posteriormente também em Dooyeweerd.

AS PERSPECTIVAS PARA A UNIDADE

Ao decorrer da história, a Igreja em grande parte das vezes, buscou em seus concílios, diálogo com seus opositores, não necessariamente se sujeitando a ideia opositora, mas saindo com uma doutrina mais fortalecida do que quando entrou. A influência de opositores no pensamento cristão é evidente, devido aos diversos pontos que tiveram que ser repensados e reavaliados ao decorrer do tempo. As ciências, no geral, tiveram grande importância para a estruturação do cristianismo que hoje vivemos. A colaboração de filósofos, geólogos, historiadores, sociólogos entre outros estudiosos é inegável, mesmo eles sendo cristãos ou não, já que em certa medida o conhecimento de Deus é dado à todos.

Ao crente o conhecimento do mundo se configura com um conhecimento Daquele que criou o mundo e tudo que nele há. Ao se desvelar algo novo, o descrente enxerga uma simples descoberta, já o cristão vê uma revelação mais profunda da Sua fonte primeira.

Certamente a existência de perspectivas diferentes são necessárias para o relacionamento pessoal. É possível até dizer que Deus foi proposital quanto as possibilidade de perspectivas bíblicas. Ele intencionalmente nos leva à uma busca pela relação para maior conhecimento Dele. Para conviver bem com as pessoas, é preciso entender que há assuntos que talvez não há um consenso, assim como outros que haverá. É necessário empatia ao fazer teologia, adotar a perspectiva do outro e se colocar no lugar do opositor, ao menos temporariamente, para poder provar, ao menos parcialmente, a perspectiva opositora.

Frame define teologia como sendo “a aplicação da Palavra de Deus por pessoas a todas as áreas da vida”[8]. Um debate então não é apenas algo simplesmente teórico, há ligação com tudo aquilo que é supra-teórico[9], ou seja, um debate antes é algo que não envolve apenas a perspectiva cognitiva, mas o tri-perspectivismo do coração. Deve-se se pensar qual o ponto mais forte e o objeto de amor mais intenso do oponente e então aliar as perspectivas a fim de trazer um equilíbrio maior ao entendimento, eventualmente chegando em uma solução, o que não necessariamente acontece. O objetivo não é a solução, mas a relação e o enriquecimento do entendimento por meio de uma visão mais ampla.

O surgimento de “espantalhos” argumentativos denotam justamente essa falta de zelo e empatia em entender a posição opositora. Quantos arminianos interpretam erroneamente o calvinismo e vice-versa? Se poderia citar também o conflito entre o cristianismo e a ciência, será que os lados estão se escutando? Não estão absolutizando suas perspectivas e reduzindo as perspectivas opositoras para levar vantagem argumentativa?  Conforme Poythress afirma: “Procuramos analisar as preocupações das pessoas e, em seguida, trabalhamos com base nelas. Essas preocupações se tornaram os diferentes ‘instrumentos’ de uma articulação”[10].

CONCLUSÃO

A visão perspectivista ao mesmo tempo que traz uma proposta de abordagem mais completa, pois não reduz o pensamento apenas a um viés, ela desmascara visões reducionistas da realidade e da teologia. O perspectivismo tem a colaborar não apenas com a teologia, mas com todas as áreas do saber e da vida.

Na Igreja essa visão pode gerar uma unidade que não tem como intenção ser ecumênica, mas dialogal. Entendendo que a soma das perspectivas podem tornar as posições teológicas mais ricas e possivelmente mais próximas, não permitindo que o orgulho e a falta de caráter gerem ambiguidades, falácias e superficialidades. Ao mesmo tempo que somos chamados a oferecer razão da nossa fé, também somos para o fazer em humildade e temor. Conforme Poythress afirma: “Crescemos em entendimento ao utilizarmos diversas perspectivas”[10].


NOTAS

[1] Frame, 2010, p. 17.

[2] Frame, 2010, p. 39.

[3] Frame, 2010, p. 91.

[4] Ibid, p. 91.

[5] Poythress, 2016, p. 10.

[6] Poythress, 2016, p. 14.

[7] Dooyeweerd, 2018, p. 36.

[8] Frame, 2010, p. 93.

[9] Dooyeweerd, 2018, p. 44.

[10] Poythress, 2016, p. 150.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

FRAME, John M. A Doutrina do Conhecimento de Deus. tradução Odayr Olivetti – São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010.

POYTHRESS, Vern S. Teologia Sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em teologia; tradução A. G. Mendes – São Paulo: Vida Nova, 2016.