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Transhumanismo: a fé no progresso levada às últimas consequências

Escrito por Rodrigo Negreiros, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2021

Introdução

Economia e tecnologia estão bastante ligadas e dependentes. À medida que o avanço tecnológico ocorre, aceleram-se processos e formam-se novas dinâmicas na sociedade. Para alcançar a velocidade das transformações e dar conta de tantas demandas, a ordem é ser multitarefa. Produzir cada vez mais em menos tempo, de modo a potencializar lucros sob a crença de que a geração de riqueza irá salvar a humanidade. “Trabalhe/estude enquanto eles dormem”. Esse virou o lema do progresso. A sobrecarga e a exaustão foram romantizadas. Curiosamente, a sociedade do progresso é uma sociedade doente, de ordem física e psicológica. Somos um dos países mais ansiosos do mundo.

Neste cenário moderno e paradoxal, o temor de que as máquinas substituam o trabalho limitado do homem causando desemprego é cada vez maior. E se as barreiras da biologia fossem ultrapassadas? E se nos tornássemos super-humanos? Se por meio do progresso conseguíssemos eliminar todos os problemas anteriores? Mais progresso para resolver problemas que a própria fé no progresso criou.

Existe algum limite para o caminho em direção a esse progresso? O que o amanhã nos reserva? Nas próximas linhas deste artigo iremos ponderar sobre a sujeição a que estamos dispostos a nos submeter em detrimento do progresso e a evidente absolutização do aspecto econômico por trás disso. Daremos um salto no futuro para falar da relação entre fé no progresso e a filosofia transhumanista como desdobramento dessa fé. Quem vai nos auxiliar nessa jornada é o economista holandês Bob Goudzwaard e seu livro Capitalismo e Progresso, traduzido em 2019 para o português pela editora Ultimato.

1. Trans… o quê?

Falar sobre transhumanismo pode soar futurista demais, sobretudo por ser uma discussão muito recente. Por isso, é importante, já no início deste artigo, conceituar esse tema. O transhumanismo trata-se de uma filosofia datada de meados do século XX que propõe o avanço dos limites físicos, psicológicos e intelectuais da humanidade por meio da tecnologia. Dentre seus objetivos estão a extensão da vida humana de maneira indefinida, exterminando todo sofrimento. Já caminhamos nessa direção da derrubada das barreiras biológicas há um tempo. O uso de próteses corretivas para os olhos, dentes, coração e outras partes do corpo são nada menos que nossa tentativa de aumentar a capacidade de nosso corpo limitado, afetado pelo pecado, usando a tecnologia. A filosofia transhumanista busca dar um passo além, visando desde a substituição de órgãos completos até a manipulação genética para criar o ser humano perfeito. Portanto, para além da tentativa de uma simples correção de parte do corpo humano, o transhumanismo acredita na troca de algo que funciona perfeitamente bem no corpo humano, para fazer algo mais do que é biologicamente possível, potencializando sua capacidade produtiva1

As novas gerações também já têm sido preparadas para um futuro transhumano. Na cultura pop, animações infantis retratam seres híbridos, meio homem, meio máquinas, tornando-os super-homens, salvando o mundo de algum perigo por possuir capacidades acima do normal. Séries da Netflix, como Black Mirror, apresentam um futuro distópico e as consequências de nos submetermos ao tecnicismo. Na literatura temos livros como Homo Deus: uma breve história do amanhã (2016), escrito pelo israelense Yuval Noah Harari, autor de best seller e considerado um dos grandes pensadores da atualidade. Harari expõe em seu livro como ele enxerga na filosofia transhumanista a salvação da natureza humana e afirma que agora, por meio do avanço tecnológico, “devemos fazer as pessoas positivamente felizes”. Em seu livro, o escritor relata que em 2012 se tornou diretor de engenharia do Google  e a partir daí começou a desenvolver uma subcompanhia cuja missão declarada era “resolver a morte”. Segundo ele, desde 2013 a empresa já investe em startups de biociência com projetos audaciosos relacionados à prorrogação da vida. (HARARI, 2016, Posic. 429, kindle).

A diretora-executiva do Centro de Genética e Sociedade nos EUA afirma que:

“Se essas modificações forem aprovadas, é possível — e até provável — que a dinâmica social e comercial leve a esforços para produzir seres humanos melhorados.”2

Ainda para a representante do CGS, isso se aproxima da definição clássica de eugenia. A fé no progresso, ao contrário de entregar a sociedade perfeita, causaria, em últimas instâncias, novos tipos de desigualdade, haja vista que nem todos teriam acesso a essas tecnologias, justamente por questões financeiras.

2. Fé e progresso

Afinal, o que levou essa fé no progresso? Em seu livro, Goudzwaard (2019) discorda do que se costuma afirmar, a ideia de que o progresso e o desenvolvimento econômico no Ocidente se deram para atender às novas demandas de produção na sociedade. Para ele, antes dessa necessidade, há compromissos religiosos envolvidos que favorecem esse desenvolvimento. Esses compromissos religiosos são a chamada fé no progresso visando o capital. Essa fé não se limita ao aspecto econômico, como já visto até aqui.

O economista afirma ainda que algumas barreiras precisaram ser ultrapassadas via revolução industrial para o estabelecimento dessa fé que se tornou a principal força propulsora do Ocidente, a saber: (1) a barreira da igreja e do céu; (2) a barreira do destino e da providência; (3) a barreira do teísmo.

A Idade Média, com forte influência da Igreja Católica, era verticalizada e hierárquica com a igreja no topo. A cosmovisão de natureza e graça era muito presente. O mundo era visto como eminentemente mau. Essa organização social não dava lugar para o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico. Precisava-se de horizontalidade, de modo que todas as esferas se comunicassem umas com as outras. Durante esse processo de horizontalização da sociedade acontece a queda da primeira barreira. O homem passa a ser livre. Ao ser livre de Deus para fazer seu próprio destino, se torna autônomo e derruba a segunda barreira. Agora ele provê e governa a si mesmo. Ao descartar a providência divina, é derrubada a última barreira rumo ao capitalismo moderno. Se estabelece a ideia de um deus distante, que não se envolve com o mundo. Um mundo entregue à própria sorte, o que inclui a economia. Se não há Deus controlando o destino de cada esfera e de cada indivíduo, é o homem que agora faz isso, tornando-se muito mais fácil e frutífero (na visão da época) a construção de projetos de desenvolvimento tecnológico e econômico. O homem então está livre para avançar rumo ao progresso, à felicidade e à redenção.

Ao olhar para o passado e perceber os avanços que foram possíveis por meio do progresso como algo positivo, olha-se agora para o futuro e se avista o progresso como o elemento capaz de nos levar a dias melhores. Justamente devido à esperança no desenvolvimento tecnológico e na prosperidade surgem os paradoxos mencionados no início deste artigo. A filosofia transhumanista, portanto, é uma maneira de tentar resolver os nossos problemas decorrentes da esperança no progresso, depositando mais fé no amanhã. Apontamos sempre para uma luz no fim do túnel no qual nunca está ao nosso alcance. “A luz brilha sempre no futuro” (GOUDZWAARD, 2019, p. 199). Essa esperança insaciável é um elemento importante para o crescimento do capitalismo moderno.

Voltamos ao ponto sobre transhumanismo para dizer que o avanço tecnológico não é o problema em si aqui. O problema é a nossa sujeição ao progresso ao ponto de nos submetermos a níveis de produção cada vez maiores. Maiores até do que nosso corpo limitado pode suportar, na crença de que a maximização produtiva nos levará a maior satisfação. Devemos questionar os interesses e motivações por trás dessas ações. Vemos que, de forma cada vez mais rápida, o progresso e o capital não servem mais ao homem. O homem serve a esses elementos. Já vivemos como se existisse uma exigência ou uma necessidade de ocupar todos os espaços de nossa agenda, estudando, trabalhando, produzindo. O descanso já virou sinônimo de indolência e a vida corrida é romantizada. O leitor provavelmente já teve ou já presenciou algum comentário sobre a sensação de inutilidade pelo simples fato de estar descansando. É a absolutização do aspecto econômico ditando as dinâmicas sociais, e, se nada for feito, nos levará à autodestruição.

O mais contraditório em todos esses esforços no futuro é que nunca tivemos tanta gente se sentindo esgotada enquanto literalmente corremos em direção a esse futuro. Isso sem mencionar os impactos ambientais. É preciso reconduzir o verdadeiro Deus ao centro do coração humano. Reconstruir as barreiras que foram derrubadas pela fé no progresso para sairmos do looping eterno de viver em função de um futuro que nunca chega, esgotando a nós mesmos, ao passo que pensamos em outras formas de aumentar nossa capacidade produtiva. Como cristãos, devemos abandonar as propostas utópicas. Assumir uma cosmovisão que não reduza o ser humano às questões econômicas, ao ponto de nos tornarmos escravos do progresso, vivendo para produzir.  

Conclusão

A fé no progresso é muito mais do que uma concepção de avanço em relação às contribuições do passado. Essa fé abrange as expectativas sobre o futuro que nos conduzirá ao florescimento de nossas realizações pessoais, profissionais, sociais e artísticas. Nesse cenário, Deus não mais intervém. A responsabilidade por nos conduzir ao paraíso está sob os esforços tecnológicos e econômicos. A mão invisível do mercado é o nosso guia para melhores resultados. 

Mas o ídolo do progresso nunca se sacia e sempre está buscando mais sacrifício, prometendo em troca mais do que pode entregar. É assim que caminhamos ao destruirmos as barreiras para o estabelecimento do capitalismo no Ocidente. Capitalismo esse que exige cada vez mais de nossas capacidades, gerando sobrecargas, doenças e medo do desemprego. Ao ponto de buscarmos formas de ultrapassar os próprios limites biológicos para entregar mais e mais ao deus do progresso em níveis inimagináveis de velocidade e quantidade de produção. Sob mais promessas de um futuro sem dor e sofrimento. Um futuro que nunca chega.

Só será possível falar de uma saída para esse vício moderno de produtividade quando o ídolo do progresso for destruído dos corações e voltarmos a nossa dependência para Deus. Ao verdadeiro Deus pertence todas as coisas. Diferente dos falsos ídolos, o Senhor já garantiu o nosso futuro, de modo que o paraíso não depende dos nossos esforços imperfeitos e sacrifícios constantes que mais nos levam à destruição.

1. Fonte: Site Engenhariae: Transhumanismo: o que é e como se preparar para sua chegada.

2. Fonte: Site Revista Veja: Chegou a era dos transumanos.


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Referências Bibliográficas

GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Tradução de Leonardo Ramos. Viçosa: Ultimato, 2019.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

ROSA, Guilherme. Chegou a era dos transumanos. 2015. Disponível em: https://veja.abril.com.br/ciencia/chegou-a-era-dos-transumanos/. Acesso em: 02 out. 2021.

RAMOS, Ademilson. Transhumanismo: o que é e como se preparar para sua chegada. 2018. Disponível em: https://engenhariae.com.br/tecnologia/transhumanismo-o-que-e-e-como-se-preparar-para-sua-chegada. Acesso em: 02 out. 2021.

MATSUURA, Sergio. Transhumanismo se tornará realidade em uma geração, prevê especialista. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/transumanismo-se-tornara-realidade-em-uma-geracao-preve-especialista-24122303. Acesso em: 02 out. 2021.

BORGES, Luiz Adriano. Operação Big Hero: o transumanismo está entre nós? 2021. Disponível em: https://tuporem.org.br/operacao-big-hero-o-transumanismo-esta-entre-nos/. Acesso em: 02 out. 2021.