Escrito por Bruno Maroni, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
…o Espírito de Deus nos instrui e nos habilita para o entendimento e a obediência e, assim, cremos no coração e chegamos ao conhecimento.
Wadislau Martins Gomes
Introdução: a fé cristã no contexto epistemológico de hoje
Historicamente considerada extramundana, obscurantista e antagônica ao progresso científico, a fé cristã se tornou foco de ampla desconfiança na cultura ocidental contemporânea. Além disso, seu uso presunçoso e irresponsável por discursos políticos, bem como a indignação com os equívocos intencionais da cristandade (principalmente evangélica) têm colaborado ainda mais para a resistência e hostilidade ao cristianismo. De modo geral, os incômodos se expressam em críticas que definem a fé cristã como antiquada para o contexto epistemológico (de conhecimento) atual e carente de razoabilidade. Por que essa crítica?
A objeção de que o exame racional e científico desacredita a cosmovisão cristã (e mais, são conflituosos com ela) se tornou comum, popular, tanto nos círculos acadêmicos rigorosos quanto em páginas de neoateísmo no Facebook. Afinal, apesar das experiências históricas negativas e reconfigurações pós-modernas, a ciência prevalece na confissão de fé de hoje em dia. Por isso, afirmações como a citada por Timothy Keller em A fé na era do ceticismo são corriqueiras: “Minha formação científica torna difícil, se não impossível, aceitar os ensinamentos do cristianismo” (2015, p. 113). Algumas críticas são apuradas e meticulosas, outras descuidadas e beligerantes, o que, porém, não restringe sua influência massiva. Mas essas críticas são viáveis? Que respostas a filosofia cristã apresenta à questão?
1. O empreendimento filosófico de Alvin Plantinga: a epistemologia reformada
Tratar de articulações filosóficas comprometidas com uma visão de mundo cristã é imprescindível sem a contribuição de Alvin Plantinga, renomado filósofo norte-americano, que lecionou em importantes universidades, e presidiu a American Philosophical Association e a Society of Christian Philosophers. Como um dos mais proeminentes autores da área na atualidade, Plantinga reconhecido por seus estudos em epistemologia, metafísica e filosofia da religião, também já recebeu o Prêmio Templeton. Entre suas obras estão: Ciência, Religião e Naturalismo: Onde Está o Conflito?, Conhecimento de Deus; Deus, a Liberdade e o Mal, Conhecimento e Crença Cristã e Crença Cristã Avalizada. A longa jornada de Plantinga é marcada por honestidade intelectual, refinamento crítico e rigor argumentativo. Seu empreendimento filosófico ficou conhecido por epistemologia reformada. Do que se trata?
A epistemologia reformada se desenvolveu na segunda metade do século 20. Alvin Plantinga e o também filósofo Nicholas Wolterstorff seguem sendo os representantes de referência dessa escola. Wolterstorff observa que a epistemologia reformada entrou em cena, definitivamente, em um momento da história da filosofia quando emergia a metaepistemologia, ou seja, uma revisão basilar das próprias teorias de conhecimento – sua natureza, possibilidades e limites. Ele diz: “Em vez de apenas avançar e desenvolver teorias epistemológicas, os filósofos se afastaram e refletiram seriamente sobre as opções estruturais disponíveis para eles na construção de tais teorias.” (apud BARTHOLOMEW, 2013, 241). Nesse contexto, Alvin Plantinga, demonstrando o motivo da epistemologia reformada, passou a propor, através de um esforço intelectual contundente e confessional, a legitimidade da crença cristã como ponto de partida para a composição filosófica. Mas que objeções perpassam essa proposta?
2. A fé cristã sob objeções: veracidade e razoabilidade
Hoje, como se observa ordinariamente, o sentido da crença cristã é contestado por objeções de teor biológico, histórico, filosófico, sociológico etc. Essas reações à fé cristã apresentam dois tipos de críticas: de facto e de jure. Do que se tratam?
A primeira, de acordo com Plantinga, é mais limitada e instável, questionando a veracidade dos conteúdos da crença cristã – ou seja, admitindo que ela é falsa (2015, n. p.). Por exemplo, identifica-se que o problema do mal no mundo – as crises, doenças, injustiças e violência – são contrafactuais à existência de um Deus amoroso, bondoso, onisciente e onipotente. A objeção de jure, mais comum e incisiva, por sua vez, não argumenta contra o conteúdo da crença cristã, mas sua forma. O que está em jogo, então, não é a veracidade ou não dos elementos da fé, mas sua razoabilidade – a estrutura da crença, sua validade e aval. Nesse caso, a questão pressuposta é: “Como a crença procede? Como creem os que creem?”.
A objeção de jure, portanto, é a afirmação que a fé cristã é irracional ou injustificada ou talvez imoral; mais exatamente, alega-se que a pessoa que abraça a fé cristã é irracional, não dispõe de justificativa para isso ou é, de outro modo, merecedora de desaprovação. […] ela é também o tipo mais comum de objeção.” (PLANTINGA, 2015, n.p.)
Em Conhecimento e Crença Cristã, Plantinga elenca, resumidamente, cinco vias críticas subpostas à objeção de jure. Primeiro, objetores alegam que a razoabilidade do cristianismo seria até válida no passado, mas por que continuaria sendo no período após múltiplos avanços científicos? Assim, é como se, ao admitir a fé cristã, uma pessoa bem informada se tornasse intelectualmente irresponsável. Claro, o próprio Alvin Plantinga expõe extensivamente em outros trabalhos que não há conflito entre religião e ciência, mas sim o embate da visão de mundo cristã com a ciência conduzida pelo naturalismo. Em segundo lugar, há também objeções enfáticas sobre o pluralismo religioso, que se mostra em uma indagação bastante comum: “Por que só o cristianismo está certo?”. Na contemporaneidade de intensa pluralidade essa crítica é praticamente inevitável. Em terceiro lugar, supõe-se que afirmar exclusivamente uma crença em detrimento de outras, consiste em arrogância intelectual.
Em quarto lugar também corriqueiramente, objetores asseguram que para que o cristianismo seja justificado, requer-se evidência e argumentação propositiva. E em quinto lugar, supõe-se que a crença cristã não é razoável porque, ao invés de proceder de um mecanismo que visa o conhecimento, vem de uma faculdade cujo fim é a realização de desejos inconscientes. O objetivo aqui não é a verdade, mas o bem-estar em um mundo hostil. Esse é o cerne da tese freudiana a respeito da gênese da religiosidade (2015, n. p.). Agora, de volta à comum objeção evidencialista, revendo suas raízes, podemos perceber se ela é ou não um anulador consistente à crença cristã.
3. De onde vem o evidencialismo: o fundacionismo predominante
O evidencialismo vem, basicamente, da revolução científica ratificada no Iluminismo (c. séculos 17 e 18). Localizá-lo historicamente é válido, mas não tão elucidativo quanto visualizá-lo a partir da tendência filosófica que, em linhas gerais, sustenta-o, no caso, o fundacionismo. Entre outros, René Descartes e John Locke foram referências para o cenário cultural decorrente. Enquanto Descartes, incomodado pela desordem racional por parte de uma Europa fragmentada pós-reforma, assumiu que a razão deveria ocupar o posto de critério julgador do todo da realidade, Locke propôs a compreensão empirista do conhecimento humano (dedução + intermediação = certeza).
Na perspectiva iluminista, a razão científica devia ser autônoma, liberta de uma fé (cristã) cada vez mais rejeitada como obscurantista, ignorante e supersticiosa. Além disso, a razão científica devia ser instrumental, empregada para controlar, predizer e moldar o mundo. Por último, a razão científica devia ser universal, transcendendo a cultura e história humanas, discernindo leis que se aplicam a todas as pessoas em todas as épocas. (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p 144)
Como sugere o próprio nome fundacionismo, trata-se da noção de que a razoabilidade de uma crença presume exigir que ela esteja sobre um fundamento. Em outras palavras, requer-se basicidade. Com que base podemos crer que o Deus Eterno é Deus de amor em ação no mundo, reconciliando-o em Cristo e através do Espírito? Que base legitima a Bíblia como revelação desse Deus? Essas indagações pressupõem a tese fundacionista. Segundo essa perspectiva, de acordo com Plantinga, as proposições fundamentais: “que aceito desse modo básico são as fundações da minha estrutura de crenças […] Vendo que só algumas proposições parecem apropriadamente básicas, um fundacionista pode passar a estabelecer condições de basicidade apropriada” – identificando, por si, determinadas proposições que passam por essa condições e outras não (2018, p. 106-107). Em síntese, fundacionismo clássico confirma a crença que se mostra auto evidente, incorrigível e evidente aos sentidos.
Essa noção compreende que uma crença religiosa é razoável caso seja fundamentada em evidências ou indícios – comprovações que a afirmem ou negam. Ou seja: precisamos de evidências que procedem da experiência e da razão para fundar nossas crenças. É o que motiva a conhecida apologética cristã evidencialista, que se apoia em dados científicos e achados históricos para contra-argumentar às objeções que acusam escassez de evidências. Embora válida, essa proposta apologética torna-se mais frágil considerando a fragilidade da própria objeção que ela enfrenta. Por que seria considerada frágil essa objeção?
4. Problemas inerentes: a contradição do fundacionismo
Em Crença Cristã Avalizada, Alvin Plantinga rastreia historicamente os motivos do fundacionismo e suas expressões. Através dessa minuciosa análise, ele identifica que o fundacionismo clássico, que impõe o dever da justificação da crença considerando seus próprios paradigmas, na verdade compromete-se por suas próprias exigências. Ora, por que seria imprescindível que a crença cristã se submetesse aos requisitos fundacionistas sendo que essa mesma tendência não cumpre suas próprias prescrições? Plantinga, em sua crítica, afirma que o fundacionismo não é auto evidente, incorrigível e evidente aos sentidos – por isso, ele não se justifica.
A filosofia recente não tem sido muito simpática ao fundacionalismo clássico; muitas objeções foram levantadas, muitos problemas foram apontados. […] o fundacionalismo clássico parece autorreferencialmente incoerente: estabelece um padrão da crença justificada a que ele mesmo não obedece. Mais exatamente, o fundacionalismo clássico, ao afirmar fundacionalismo clássico (e presumivelmente acreditar nele), estabelece um padrão para que tenhamos justificação, não tenhamos culpa, façamos jus aos nossos direitos intelectuais – um padrão, contudo, a que a sua própria crença na imagem clássica não obedece. (2018, p. 115)
Por exemplo, como estabelecemos crenças básicas? Averiguando dados empiricamente e filtrando-os racionalmente, retendo proposições e as analisando? De fato, não. Nossas crenças básicas se formam espontaneamente, de imediato e até involuntariamente. Quando olho para determinado objeto, creio que o vejo, sem que essa crença passe por um processo de averiguação fundacional para ser validada. Podemos dizer que crenças básicas compõem nossa vivência ordinária.
Considerações finais: conhecimento e crença, e a basicidade da fé cristã
Olhando para as colocações da epistemologia reformada, especialmente para a contribuição de Alvin Plantinga, temos a oportunidade de perceber não só uma resposta crítica rigorosamente encadeada, mas também uma exposição propositiva. Mais do que discernir e interceptar as objeções à crença cristã, o autor também apresenta a razoabilidade dela própria. Então, se não são evidências fundamentadas proposicionalmente, o que torna a crença cristã justificada? A base da crença cristã não está na argumentação proposicional – ela não é uma hipótese científica. Embora possamos conhecer certas evidências (o que é muito válido), compreender e até concordar com argumentos a favor da existência de Deus, por exemplo, não dependemos disso para crer. A crença cristã é básica em si.
Portanto, do que procede a crença? Ela é formada pela ação sobrenatural do Espírito Santo no coração, na centralidade da experiência humana, por meio do vislumbre do amor divino, gerando fé e redirecionando nossa confiança ao Deus que se revela. Esse ato desperta a crença que é determinantemente não controlável, espontânea, e não por isso irrazoável. Diante disso, de um cenário fundacionista/evidencialista ainda prevalecente, é necessário reconsiderar as afirmações de que o cristianismo é desprovido de bases, fundamentos, que o justifiquem. Ao invés disso, devemos admitir as inconsistências dos próprios julgamentos epistemológicos aos quais incorremos – eles mesmos têm fundamento? Por último, precisamos recordar da transformação cognitiva que o Espírito Santo opera em nós, restaurando o nosso conhecimento, e também do papel decisivo que Ele tem na formulação da crença cristã, que é, em si, avalizada.
O convite interno do Espírito Santo é consequentemente uma fonte de crença, um processo cognitivo que produz em nós a crença nas linhas principais da narrativa cristã. (PLANTINGA, 2018, p. 221).
Referências bibliográficas
GOHEEN, Michael W; BARTHOLOMEW, Craig G. Christian philosophy: a systematic and narrative introduction. Edição Kindle: 2013.
GOHEEN, Michael W; BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a narrativa bíblica e a contemporânea. Trad. Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016.
KELLER, Timothy. A fé na era do ceticismo: como a razão explica Deus. Trad. Regina Lyra. São Paulo: Vida Nova, 2014.
PLANTINGA, Alvin. Crença cristã avalizada. Trad. Desidério Murcho. São Paulo: Vida Nova, 2018.
___________ Conhecimento e crença. Trad. Sérgio Ricardo Neves de Miranda. Brasília: Monergismo, 2016.