fbpx

As virtudes sapienciais para o uso das mídias sociais

Escrito por Kaiky Fernandez, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022

Introdução

Um estudo publicado pela WeAreSocial e Hootsuite em 2021 apresentou dados importantes sobre a relação do brasileiro com a internet. Mais de 150 milhões de usuários, o equivalente a 70% da população nacional, são ativos nas mídias sociais1. A questão é que a reflexão sobre os desdobramentos do uso e os impactos de tais mídias não acompanham na mesma proporção o crescimento do uso em si.

Há uma carência de orientações práticas e bíblicas sobre como lidar com tais recursos, principalmente do ponto de vista do produtor de conteúdo — de quem atua intencionalmente produzindo textos ou conteúdo audiovisual em mídias. Um dos motivos para essa carência talvez seja a dificuldade de estabelecer regras universais para algo que é tão dinâmico e imprevisível.

Assim, a teologia canônica-linguística pode ser um caminho viável para estabelecer diretrizes bíblicas que sejam relevantes e ao mesmo tempo aplicáveis nesse contexto de mutabilidade. Tal abordagem teológica tem como uma das suas características justamente esse princípio: aplicar as verdades universais das Escrituras em contextos inusitados.

Os desafios tecno-sociais da conectividade

As mídias sociais, sem dúvida, trouxeram mudanças enormes para a nossa sociedade. Nesse contexto de conectividade, as pessoas têm a possibilidade de não apenas consumir conteúdo, mas também produzi-lo. Podem deixar de ter um local fixo para se entreter, como a televisão de casa ou um cinema, e fazer isso com mobilidade por meio dos seus dispositivos móveis.

Boa parte dos serviços que alguém precisa no dia a dia também podem ser acessados ou solicitados por um smartphone, em apenas alguns cliques. O mesmo vale, sobretudo, quanto à comunicação entre pessoas. Quando se trata da Geração Z2, por exemplo, isso se torna ainda mais evidente:

Uma das maiores diferenças entre a Geração Z e outras gerações quando se trata de comunicação é que ela sempre teve a possibilidade de enviar e receber mensagens instantâneas — o que fez quase exclusivamente por meio de seus telefones. Isso transformou seus padrões e preferências quanto à comunicação. (DORSEY; VILLA, 2021, p. 85)

Para além dos benefícios e comodidades que essas transformações trouxeram, vieram também alguns desafios e problemas. Para fins didáticos, eles podem ser categorizados em dois grupos: relacionados ao consumo e à produção de conteúdo. Embora as fronteiras entre ambos sejam difíceis de serem delineadas, essa divisão auxilia em relação às ênfases dadas a cada um. 

Em relação ao primeiro grupo, os problemas mais comuns são ansiedade e stress (DORSEY; VILLA, 2021, p. 45) ou impactos negativos em relação ao amor-próprio, autoestima, autoimagem e confiança (Ibid., p. 75). Em resposta a isso, algumas obras estão sendo publicadas para auxiliar as pessoas a lidarem com o uso das mídias sociais de forma mais sábia, moderada e consciente. Entre elas, por exemplo, estão A guerra dos espetáculos: o cristão na era da mídia (Tony Reinke), 12 maneiras como seu celular está transformando você (Tony Reinke), Sabedoria digital para a família (Andy Crouch) e A família na era digital (Lediel dos Santos).

Em relação ao segundo grupo, os problemas não estão no indivíduo em si, mas naquilo que ele produz e no impacto disso no próximo. Dentre os dilemas mais evidentes, estão as questões éticas relacionadas à produção de conteúdo, à forma de reagir a situações adversas nas redes ou ao confronto de ideias divergentes que acabam gerando divisões e brigas.

Quanto a este grupo, no entanto, há uma carência de literatura ou fundamentos para um uso biblicamente adequado e culturalmente relevante. O desafio está no fato de que as mídias sociais são ambientes extremamente fluidos e dinâmicos, no que se refere à sua estrutura (desafio tecnológico), e muito imprevisíveis no que se refere às relações estabelecidas (desafio social).

Quanto à estrutura, as próprias plataformas estão em constantes mudanças. Os algoritmos são ajustados ou redesenhados, novas funções são incluídas, outras são removidas e, muitas vezes, não há sequer um mesmo pacote de funcionalidades equivalente para todos os usuários em virtude dos chamados “testes A/B”3.

Quanto às relações, nos deparamos com as mais diversas e inusitadas situações todos os dias. Seja um conteúdo viral, um cancelamento, uma discussão por algo legítimo ou uma retaliação por algo que foi falado. É um ambiente totalmente imprevisível. 

Se torna inviável, portanto, a construção de um manual de regras, uma vez que provavelmente ficará defasado em questão de meses (quanto à estrutura) ou não conseguirá abranger todos os desafios práticos (quanto às relações). 

A improvisação teodramática

Na obra O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã, o teólogo Kevin J. Vanhoozer defende que a maneira mais adequada de se perceber toda a riqueza do cânon, bem como o papel dos cristãos diante dele, é compreendendo-o como um drama, e não apenas como uma narrativa:

Embora seja verdade que grande parte da Bíblia está escrita em forma de relato, as narrativas e os dramas representam os relatos de maneiras distintas. As narrativas exigem narradores e reproduzem relatos na primeira ou terceira pessoa. Os dramas, em contrapartida, mostram em vez de dizer. Além disso, no drama, as palavras fazem parte da ação. (VANHOOZER, 2016, p. 64)

Dessa forma, Vanhoozer aponta que os cristãos devem enxergar as Escrituras como algo mais do que apenas um conjunto de relatos. Na perspectiva do drama, as palavras não apenas têm caráter informativo, mas também implicam em ação. Quando, por exemplo, Deus fala por meio da Sua Palavra, Ele também está agindo.

O teodrama canônico também é importante porque coloca os indivíduos em ação. Reconhecendo-o dessa forma, deixa de haver uma recepção passiva do seu conteúdo para ter uma recepção ativa, no sentido de inclusão na dramatização cósmica. Isso significa, na prática, que um cristão não apenas lê a Bíblia, mas também, com a sua vida, dá continuidade a ela e em resposta a ela.

A missão à qual o autor nos convida é “reconhecer o que o Dramaturgo [Deus] está fazendo nas muitas vozes presentes nas Escrituras e responder a essa ação de forma adequada” (Ibid., p. 197). Em outras palavras, isso pode ser colocado como um chamado à improvisação. 

 A improvisação teatral, no entanto, não significa fazer algo sem critério ou referência, de forma totalmente aleatória ou a próprio gosto. Antes, o contrário: “Improvisar bem é algo que exige estudo (formação) e discernimento (imaginação)” (Ibid., 352). Assim, as doutrinas cumprem um papel fundamental para que a improvisação — a continuidade bíblica em novos contextos e situações — aconteça de forma coerente e adequada ao roteiro canônico.

As virtudes sapienciais como um caminho

A improvisação canônica se apresenta como uma alternativa viável e desejável para o segundo grupo de desafios das mídias sociais, aquele que diz respeito às relações e às situações inesperadas, sobretudo na perspectiva do produtor de conteúdo. É uma resposta que pressupõe soluções criativas para desafios que pressupõem imprevisibilidade. Para isso, é necessário que sejam formadas, a partir das Escrituras e da ação santificadora do Espírito, virtudes sapienciais.

Vanhoozer define virtude sapiencial como um traço de caráter, hábito ou disposição que conduz à sabedoria e ao florescimento humano (Ibid., 347), destacando duas delas para os fins da improvisação: percepção e perspectiva.

A virtude da percepção é aquela que auxilia a analisar e compreender uma determinada situação, para respondê-la da forma mais adequada possível. “Assim, uma pessoa perceptiva é aquela para quem nada passa despercebido; é a pessoa que enxerga e experimenta tudo o que é teologicamente relevante em uma situação.” (Ibid., 349). Se trata da virtude que capacita a enxergar os detalhes para além do que já está explícito.

A virtude da perspectiva, por outro lado, é aquela que auxilia em uma compreensão mais ampla, histórica. “Ter perspectiva é uma virtude sapiencial porque é um meio de dizer e fazer o que é certo em vez de simplesmente reagir às exigências das circunstâncias” (Ibid., 350). Se trata da virtude que capacita a enxergar o todo para além do contexto imediato.

Essas virtudes são biblicamente cultivadas quando há a compreensão de que o conteúdo bíblico é teodramático e não apenas descritivo. Quando, mesmo ao se deparar com uma narrativa bíblica, o cânon é enxergado como um roteiro divinamente autorizado para a vida ordinária, com exemplos performáticos do próprio Deus, dos profetas, de Jesus e dos apóstolos.

A percepção leva o produtor de conteúdo a reconhecer com o que de fato ele está lidando em determinada situação. É a virtude que o torna sensível para agir e responder com coerência à fé cristã. Já a perspectiva é um antídoto para o aspecto imediatista das mídias sociais. É a virtude que possibilita um olhar mais amplo, respeitoso e integrado.

Conclusão

Ainda que as Escrituras não tratem diretamente sobre o uso das mídias sociais, elas são o roteiro teodramático elaborado pelo próprio Dramaturgo para haver uma improvisação criativamente fiel aos desafios e dilemas do mundo contemporâneo, aos quais se inclui o uso das mídias sociais.

Diante da incompatibilidade de se ter um manual de regras fixas para esse contexto totalmente mutável, com novas variáveis surgindo a todo momento, o cultivo das virtudes sapienciais — percepção e perspectiva — é um caminho bíblico para lidar com a situação em vez de simplesmente ignorá-la ou, no melhor das hipóteses, seguir outros roteiros que serão insuficientes.

O papel de toda pessoa que segue Jesus é agir em conformidade a Ele nas situações de hoje. É necessário viver em imitação criativa: participar e dar continuidade de maneira fiel às missões do Filho e do Espírito, mas em novos contextos e situações que não estão presentes no cânon; no entanto, usando-o como o roteiro a partir do qual acontecerá essa improvisação. 


Quer entender mais sobre teologia e filosofia?


1 DateReportal. Digital 2021: Brazil. Disponível em: <https://datareportal.com/reports/digital-2021-brazil>. Acesso em: 15 dez, 2021.

2 Geração das pessoas nascidas entre 1996 e 2012.

3 É comum que mídias sociais disponibilizem certas funções ou layouts para diferentes grupos de usuários a fim de testá-las antes de disponibilizá-las universalmente.


Referências Bibliográficas

DateReportal. Digital 2021: Brazil. Disponível em: <https://datareportal.com/reports/digital-2021-brazil>. Acesso em: 15 dez, 2021.

DORSEY, Jason; VILLA, Denise. Zconomy: como a geração z vai mudar o futuro dos negócios e o que fazer diante disso. Tradução: Bruno Fiuza e Roberta Clapp. Rio de Janeiro: Agir, 2021.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.