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Cosmovisão e o ensino na igreja

Escrito por Lucas Batista Quintino1, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução

O presente texto é um artigo acadêmico no qual apresentamos o conceito de cosmovisão cristã como ferramenta teórica para orientar o programa de ensino na igreja local. A partir do comissionamento dado por Jesus aos apóstolos, defendemos que a igreja tem uma missão que, dentre outros aspectos, possui uma tarefa de ensino, de caráter abrangente e fundamentado na autoridade de Cristo.

O conceito de cosmovisão utilizado nesse artigo foi cunhado por James Sire, e consiste em

um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso em uma narrativa ou um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente, ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos (SIRE, 2012, p. 179).

Assim, por cosmovisão cristã entendemos o drama encenado por Deus e seu povo, no universo criado em perfeição e santidade, mas radicalmente deturpado pelo pecado dos anjos infiéis e da raça humana. Nesse drama, Deus escolhe redimir todas as coisas através do Filho, aplicando sua obra redentora em seu povo, por meio do Espírito Santo. Esse povo se manifesta na história em duas alianças, mas que funcionam através do mesmo princípio, a saber, a fé na boa notícia do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. A consumação do drama se dá no casamento do Filho com sua noiva. As bodas do Cordeiro são a manifestação da união final entre Deus e seu povo, que outrora estavam separados pelo pecado, mas que então viverão em santa e eterna comunhão.

1. A missão de ensinar

Quando Jesus comissionou os apóstolos, e com eles a Igreja, suas palavras foram diretas e inequívocas: “toda autoridade me foi dada nos céus e na terra (…) façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que tenho ordenado” (Mt 28.18-20; Mc 16.14-18). 

Nesse sentido, se considerarmos apenas os registros dos evangelhos, podemos afirmar, com certa segurança, que a missão da igreja é fazer discípulos de Jesus. A questão fica um pouco mais complexa quando tentamos definir o que significa “fazer discípulos”. Várias tradições teológicas deram diferentes significados para essa expressão. Contudo, se considerarmos que o próprio Jesus, ao comissionar os apóstolos, definiu em que consiste a tarefa de fazer discípulos, veremos que, dentre outros aspectos, fazer discípulos é “ensinar a guardar todas as coisas que Jesus ordenou”. Sendo assim, é razoável afirmar que a igreja tem um papel pedagógico na vida do crente.

Para que esse ensino e aprendizagem aconteça, é indispensável a atuação direta do Espírito Santo (Atos 1.8 e 16.14), pois, dada a condição de inimizade contra Deus, o coração de cada ser humano tem uma disposição contrária à direção divina. Essa é a causa de tantos embates entre Jesus e o líderes religiosos de seu tempo. Tanto Jesus como os fariseus, os saduceus, os zelotes e os essênios tinham Moisés e os profetas como referência autoritativa. Contudo, suas conclusões e ensinamentos eram bastante distintos, pois seus compromissos e orientações do coração eram distintos.

Essa mudança de compromissos e direção, na orientação fundamental do “coração”, é descrita por Jesus como “novo nascimento”, ou “regeneração” (João 3.4,5 e 11). A menos que esse evento aconteça, Jesus compara qualquer esforço para transformação humana a um grande desperdício. Nas palavras dele, é como remendar vestes velhas com tecidos novos, ou preencher odres velhos, com vinho novo. Tanto as vestes, quanto os odres e o vinho se perdem (Marcos 2.21-22).

Sendo assim, a Igreja só pode cumprir efetivamente sua missão pedagógica naqueles que tiveram sua cosmovisão reorientada pelo Espírito Santo (2Coríntios 10.4-5). A partir do entendimento que a regeneração é condição de possibilidade para a Igreja cumprir sua missão de ensino, passemos à abrangência do ensino na Igreja.

2. A abrangência do ensino

Ao comissionar os seus discípulos, Jesus estabeleceu um currículo abrangente para que eles ensinassem: “(…) ensinando-os a guardar todas as coisas que tenho ordenado” (Mt 28.20). Nessa tarefa desafiadora, a igreja tem nas Escrituras seu principal referencial de conteúdo e método para o ensino. Se considerarmos a metáfora dramatúrgica que Vanhoozer utiliza para apresentar o lócus da reflexão teológica na vida da igreja, as Escrituras são o roteiro para que o drama e o conteúdo de sua cosmovisão se desenvolvam.

Desse modo, ao problematizarmos o aspecto pedagógico da missão da igreja, nos deparamos com várias perguntas, como: Por onde se deve começar o ensino? Como organizar e identificar os conceitos mais importantes? Como aplicar o conteúdo das Escrituras em diferentes contextos histórico-culturais? Essas questões encontram no conceito de cosmovisão uma importante ferramenta teórica que contribui para construção de suas respostas.

Essa conexão entre cosmovisão e teologia é muito bem trabalhada por Naugle, em Cosmovisão: a história de um conceito, no nono capítulo, Reflexões teológicas sobre cosmovisão (NAUGLE, 2017, p. 315). Nele, o autor apresenta um roteiro que conecta os principais elementos das Escrituras organizados numa abordagem com três elementos principais, a saber: 1) Objetividade e subjetividade da realidade; 2) o pecado e guerra espiritual; 3) graça e redenção. 

Naugle demonstra que a cosmovisão, na perspectiva cristã, implica a existência objetiva do Deus trinitário cujo caráter essencial estabelece a ordem moral do Universo e cuja palavra, sabedoria e lei definem e governam todos os aspectos da existência criada (NAUGLE, 2017,p. 322). Além disso, os seres humanos, como imagem e semelhança de Deus, estão ancorados e integrados no coração como a esfera subjetiva da consciência, decisiva para moldar uma visão da vida (NAUGLE, 2017, p. 331). 

Ademais, Naugle demonstra também que os efeitos catastróficos do pecado na mente e no coração humanos resultam na fabricação de sistemas de crença idólatras que tentam substituir Deus, de modo que a raça humana está engajada na guerra espiritual cósmica onde a verdade sobre a realidade e o significado da vida estão em jogo (NAUGLE, 2017, p. 339). 

Por fim, Naugle explica que cosmovisão, na perspectiva cristã, implica a graciosa entrada do Reino de Deus na história humana na pessoa e obra de Jesus Cristo, expiando o pecado, derrotando os principados e potestades e capacitando aqueles que nele creem a obter um conhecimento do Deus verdadeiro e uma compreensão adequada do mundo como sua criação (NAUGLE, 2017, p. 350).

Conclusão

Por tudo isso, vemos que Jesus comissionou a igreja para ensinar. Fazer discípulos, dentre outras coisas, é ensinar tudo aquilo que Jesus ordenou que guardássemos. Nessa missão, temos no conceito de cosmovisão uma importante ferramenta teórica que auxilia na compreensão abrangente do conteúdo a ser ensinado pela Igreja. 

Por fim, Naugle faz um excelente trabalho ao estabelecer as conexões entre o conceito de cosmovisão e a teologia cristã. Para o autor, a cosmovisão associada ao ensino cristão implica na redenção graciosa de Deus que liberta o coração de homens e mulheres da idolatria e de falsas visões da vida engendradas pelo engano satânico e pela cegueira do pecado e os capacita, por meio da fé em Jesus Cristo, a chegar a um conhecimento de Deus e à verdade sobre sua criação e todos os aspectos da realidade (NAUGLE, 2017, p. 323).


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1 Lucas Batista Quintino é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. Atua como pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana de Anápolis (GO). É bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano Brasil Central e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012), especialista em teologia filosófica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (2018), especialista em Antropologia Intercultural pela Universidade Evangélica de Goiás (2020).


Bibliografia

NAUGLE, David. K. Cosmovisão: A história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2017. 488 p.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Trad. Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. 1ª ed. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2012, 246 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.