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De olhos abertos e coração contrito: reflexões sobre o fazer teológico

Escrito por João L. Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

INTRODUÇÃO

O método teológico não alcançou unanimidade mesmo depois de mais de dois mil anos de história cristã. Talvez, unanimidade absoluta seja, de fato, impossível, dadas as diferenças características de cada ser humano que vive neste planeta. E sim, este já é um pressuposto que assumo, o de que as peculiaridades de cada indivíduo tangenciam, ainda que minimamente, o método teológico – e não só este, mas tudo aquilo que diz respeito à vida humana. Outro pressuposto que assumo é o da impossibilidade desse indivíduo possuir qualquer conhecimento a priori, ou seja, todo conhecimento se dá numa integração de fatores reais que formam no indivíduo as imagens mentais que chamamos de conhecimento.

Por que isso é importante para a maneira como fazemos teologia? Tentaremos responder a essa questão no decorrer da argumentação, contudo, a título introdutório, assumimos que recorrer às Escrituras – nosso objeto teológico – de maneira unívoca e propositiva, além de reducionista, constitui um perigo que devemos nos preocupar. Fazer teologia exige um olhar mais abrangente.

Em outras palavras, ousamos reconhecer desde já a importância da constituição psicológica do ser humano, imerso num mundo em constante movimento. O que nos permite também reconhecer que fazer da teologia um conhecimento puramente objetivo, neutro, desenraizado e descomprometido, pode ser muita coisa, menos teologia cristã. O Deus que se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1:14), fez de toda a existência, em todos os seus aspectos, o seu meio de Revelação. Unanimidade, portanto, dependerá de um conjunto infinito de condições idênticas, o que é claramente impossível. Será então a teologia, uma tarefa tão pessoal e íntima que admite a existência de tantas verdades e métodos quanto hajam indivíduos?

1. A GRANDE SÍNTESE – RAZÃO E FÉ

Tomás de Aquino (1225-1274) representa o ápice da Escolástica; o período medieval marcado pela descoberta de Aristóteles¹, pelo desenvolvimento das universidades e das chamadas Ordens Mendicantes, especialmente dominicanos e franciscanos, entre outros inúmeros acontecimentos importantes, tanto do ponto de vista eclesiástico, como também na cultura e na política. Nessa efervescência, Tomás constitui-se um paradigma teológico e filosófico. Os filósofos G. Reale e D. Antiseri apontam que em meados do século XIII, Tomás “decidiu entrar na Ordem [dos Dominicanos] atraído pela nova forma de vida religiosa, aberta às novas instâncias sociais, envolvida no debate cultural e livre de interesses mundanos” (2017: 565).

Eis um indicativo importante do método teológico de Tomás de Aquino. Parece que ele enxergava o mundo de forma fragmentada, discernindo a vida religiosa sem interesses mundanos das instâncias socioculturais. Deve-se ter cuidado com as interpretações dos tomistas, de qualquer que sejam os lados. Aqui, seguindo com Reale e Antiseri, ambos afirmam que havia sim em Tomás “uma filosofia ‘preambula fidei’”, e continuam, “a filosofia[ em Tomás] tem configuração e autonomia próprias (2017: 566). Seguindo este pensamento, podemos concluir que a razão para Tomás de Aquino não possui caráter absoluto, como se fosse capaz de conhecer tudo sobre todas as coisas. Mas não é essa a nossa questão. Façamos uma distinção aqui. Nossa análise não trata da razão como conhecimento absoluto, mas da razão como conhecimento neutro. O método teológico de Tomás, portanto, reconhecia a insuficiência da razão, porém, dava à ela autonomia para que corresse enquanto suas pernas tivessem forças.

Ao percorrer os espaços possíveis e chegando ao final das suas forças, seria preciso que a teologia, a sacra doctrina, aperfeiçoasse aquilo que a razão deixou incompleto. Fazendo a justa distinção entre filosofia – conhecimento racional, e a teologia – princípio de fé, é correto afirmar que “ambas falam de Deus, do Homem e do Mundo” (REALE e ANTISERI, 2017: 566), contudo seus princípios são apenas complementares. Nessa direção, uma identificação primária do método teológico de Tomás de Aquino pode ser vista nas palavras de Étienne Gilson e Philotheus Boehner:

“Embora haja problemas que interessam igualmente ao filósofo e ao teólogo, cada qual os trata de maneira distinta. ‘O filósofo tira seus argumentos das essências das coisas, ou seja, de suas causas próprias. O teólogo, ao contrário, parte sempre da Primeira causa ou de Deus’” (2012: 450).

Anteriormente mencionei que algum cuidado deve ser tomado quanto às conclusões dos comentadores de Tomás de Aquino. Entre eles há discordâncias importantes. Daquilo que apresentamos até aqui, usando nomes de grande respeito entre os estudiosos, filósofos e teólogos, podemos contrapor outra apreciação de Tomás de Aquino, também embasada em respeitados estudiosos. Entre eles estão o jesuíta Marlet e o filósofo J. Glenn Friesen, mais conhecidos através do trabalho de Guilherme Braun, Um Método Trinitário Neocalvisnista de Apologética.

Segundo esses autores, há um (neo)tomismo apoiado em quatro pontos sumariamente relevantes para nossa argumentação. São eles:

1) Menção à corrupção radical do homem; 2) Oposição a qualquer divisão entre o domínio da filosofia, pertencente à luz natural da razão, e o domínio da teologia, pertencente à luz divina da revelação; 3) Negação da autonomia do pensamento; 4) Afirmação do centro religioso do homem (FRIESEN, 2011 apud BRAUN 2019: 185).

Para nossos interesses, os pontos 2 e 3 se destacam dos demais, visto que contrariam aquilo que dissemos acima. Nesse momento, estamos não mais tratando de teologia e da filosofia enquanto capacidades autônomas e meramente complementares. Insistir nisso indicaria uma dualidade que H. Dooyeweerd – filósofo cristão holandês e herdeiro da tradição neocalvinista de A. Kuyper – descreveu como dualismo natureza e graça; onde a fé atua “além da ordem natural da criação”, e nos priva da “compreensão do caráter integral e radical da Palavra-revelação” (DOOYEWEERD, 2018: 188). Ainda segundo Dooyeweerd, “toda a distinção entre uma chamada teologia sacra e as ciências profanas surgiu do dualismo não bíblico inerente ao motivo básico escolástico de natureza e graça sobrenatural” (2018: 189).

Ao contrário, conforme Braun apontará, é possível uma leitura de Tomás de Aquino que reconheça que “o homem depende, em última instância, de Deus” (BRAUN, 2019: 187). Uma leitura, portanto, mais agostiniana de Tomás de Aquino. E uma “filosofia implícita na teologia [que] pressupõe claramente a soberania absoluta do Criador” (MARLET, 1954 apud BRAUN 2019: 198).

2. A QUESTÃO DE FATO

Voltando à nossa questão inicial, sobre o método teológico, podemos seguir adiante e apontar algumas direções. A teologia que despreza parte da Criação, em favor de uma sacralidade exclusiva, não parece fazer justiça ao Criador, visto que todas as coisas foram criadas por Ele a partir do nada. Mesmo que para os moldes da filosofia pagã a criação ex nihilo seja absurda. Vale salientar também que para a teologia desprezar parte da Criação, basta que reconheça a autonomia desta parte.

Sendo assim, também não pode haver uma distinção radical entre os campos da fé e da razão, das ciências naturais e da revelação divina. Enquanto criaturas somos parte desse campo revelacional ao qual tudo está sujeito. Portanto, ciências naturais, também é exercida diante de Deus. O uso das faculdades da razão, no que concerne à epistemologia e à ética, também estão sujeitas à Palavra-revelação de Deus. E isso implica dizer que anterior às questões epistêmicas e éticas, está a questão antropológica, que aponta o fundamento para quem deseja conhecer e agir no mundo de Deus.

Quando discutimos as leituras feitas a partir de Tomás de Aquino, ainda que resumidamente, mais do que buscar uma solução ou uma direção que nos satisfaça, o que fica mais evidente, é a crise do ser humano que busca seu lugar no mundo. Começamos perguntando sobre o método teológico, mas a questão se estende além das barreiras da disciplina teológica, para um ser humano que possui consciência de si e do mundo, e precisa responder a si mesmo, o que fazer agora?

Pensar tais temas a partir de Tomás de Aquino e do contexto no qual ele se insere, o final da Escolástica (séculos XII e XIII), ganha contornos interessantes e singulares. Os estudiosos acabam concordando que se trata de um momento de síntese. A racionalidade crescia desde os pré-socráticos e as explicações míticas, pouco a pouco, mostravam-se insuficientes, especialmente quando as interações culturais se intensificaram. Por outro lado, a religião cristã, inicialmente vinculada ao judaísmo antigo, mas que paulatinamente vai criando uma identidade própria, ganha relevância social, política e, por que não dizer, econômica. Em Tomás de Aquino há uma síntese, dualista ou não, entre fé e razão, que caminhará para o divórcio total na modernidade. Se anteriormente a fé possuía algum privilégio sobre a razão, na modernidade a ordem se inverte, a razão ganhará proeminência, e a fé será reduzida à esfera privada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – DA GRANDE SÍNTESE AO FUNDAMENTO

Retomando os dois pressupostos apresentados na Introdução compreendemos que não se faz teologia partindo de qualquer tipo de neutralidade. Se admitimos que somos afetados intimamente pelas circunstâncias que nos fazem distintos uns dos outros, e que é com essa complexidade individual que nos aproximamos da Revelação de Deus, não podem haver fatos puros, que não sejam também contextualizados. Portanto, não se faz teologia desprezando esses aspectos que constituem também a Revelação de Deus e que existem Coram Deo – diante de Deus.

O que nos leva a dizer que a teologia e a filosofia, conhecimento e verdade, se fazem sob iluminação. Não há descoberta, nem exercício absoluto da faculdade intelectual, e, menos ainda, reminiscência. Numa longa citação do Solilóquios de Agostinho, lemos:

E agora, após o meu ensinamento, aprende, na medida que a situação atual exige, da semelhança com os sensíveis alguma coisa acerca de Deus. Deus é inteligível, inteligíveis são também os princípios das disciplinas, todavia com notáveis diferenças. Com efeito, visíveis são tanto as qualidades corpóreas quanto a luz, mas as qualidades corpóreas não podem ser vistas se não iluminadas pela luz. Portanto, deve-se considerar que também os conceitos relativos às ciências, que qualquer um considera absolutamente verdadeiros, não podem ser entendidos se não são iluminados, por assim dizer, por um próprio sol. Portanto, do mesmo modo que nesse sol podemos notar três coisas: que existe, que brilha, que ilumina, assim em Deus inefável, que tu queres conhecer, são em certo sentido três princípios: que existe, que é ser inteligível, que torna inteligível todas as outras coisas” (Agostinho apud REALE e ANTISERI, 2017: 457).

Assim, o papel central do coração no método teológico torna-se uma extensão do papel central do coração em relação à existência do próprio Homem, criado por Deus, que vive no mundo de Deus, que possui consciência disso, mas que é incapaz de iluminar-se a si mesmo.

Por fim, é possível que existam diferentes ênfases e abordagens na teologia. Como demonstrou Dooyeweerd, nossas experiências são sempre limitadas à ordem temporal. Contudo, o pressuposto revelacional da verdade é, do início ao fim, o único meio válido e confiável para superarmos as ambiguidades da própria razão e da natureza. Ambiguidades que a razão não dá conta de solucionar, visto que está dentro da mesma ambiguidade. É preciso que algo de fora da ambiguidade a ilumine. O que coloca a razão sujeita a ela. A própria fé também está sujeita à iluminação, à medida em que não atua sob suas próprias convicções, mas constitui-se dom (cf. Ef 2) de Deus. De todos os lados, portanto, estamos cercados da necessidade da Revelação de Deus, seja para a filosofia, ou para a teologia, seja para a mais simples decisão, ou para o mais elaborado dos métodos. Por isso, tudo o que fazemos, fazemos de olhos abertos, e de coração contrito, sempre diante de Deus. 


Quer entender mais sobre teologia e filosofia?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA: Almeida Corrigida Fiel.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Étienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Tradução de Raimundo Vier, 13ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BRAUN Jr, Guilherme. Um Método Trinitário Neocalvinista de Apologética: Reconciliando a apologética de Van Til com a Filosofia Reformacional. Brasília/DF: Academia Monergista, 2019.

DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim Souza. Brasília/DF: Editora Monergismo, 2018.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017.

¹ Segundo autores como G. Reale e D. Antiseri, os escritos lógicos de Aristóteles já eram conhecidos há algum tempo. No Século XIII, contudo, haverá uma apreciação e difusão dos escritos de Física e Metafísica. A descoberta desses escritos proporcionava uma antropologia filosófica, independente da Revelação.