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Do pó da terra à alma política

Escrito por João L. Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

Religião e política são sempre assuntos delicados, especialmente quando tratados na esfera pública. É o campo das tensões, das controvérsias, das razões e das paixões. Ainda que os Homens arroguem imparcialidade e pragmatismo, com ares de sofisticação, “nossa vida privada foi de tal forma politizada que se transformou no palco central da ação [e do debate] público atual” (DULCI, 2018: 71).

Esta reflexão em forma de artigo procura articular no pensamento político a raiz que orienta os cristãos a desempenharem funções públicas coerentes com o Evangelho de Jesus Cristo.

1 – IDENTIFICANDO A ANTÍTESE

O primeiro capítulo de “Visões e Ilusões Políticas” (INTRODUÇÃO: ideologia, religião e idolatria; Vida Nova, 2014) escrito pelo cientista político David Koyzis é brilhante para nos situar no universo político contemporâneo. Por mais que nos sintamos alheios às questões públicas, reduzidas ao voto descompromissado em época de eleições, Koyzis mostra como o debate público não apenas nos atinge diretamente, mas como estamos diametralmente inclinados às suas postulações.

Portanto, nunca foi tão imperativo construirmos um diálogo sólido e “vigoroso para a ação política contemporânea” (DULCI, 2018: 27), que seja capaz de identificar pontos de contato entre a fé cristã e a ação política existente, além de manter as antíteses, fruto dos compromissos últimos do coração dos Homens, que dirigem e orientam suas ações.

Para esta articulação, portanto, identificar as ideologias com as antigas idolatrias é fundamental, e nisso Koyzis é preciso. Sabendo que ideologia já foi vista tanto como algo positivo quanto negativo na história do pensamento ocidental, Koyzis deixa claro desde o início que as ideologias atuais são como “tipos modernos do fenômeno perene da idolatria” bíblica, e na sequência explicita o motivo, porque há “no seu bojo [das ideologias] suas próprias teorias sobre o pecado e a redenção” (KOYZIS, 2014: 18).

A tese de Koyzis é relativamente simples para aqueles que estão minimamente familiarizados com o texto bíblico. A idolatria surge da ação humana que separa um aspecto da realidade criada por Deus, sublimando-o em detrimento dos outros. Isso foi feito pelos egípcios quando escolheram o sol (Rá) como seu deus, como também pelo povo de Israel, no deserto, quando confeccionou para si um deus de ouro cuja forma era a de um bezerro (cf. Êxodo 32). As ideologias políticas na modernidade não se apegam mais ao sol ou aos animais, mas a conceitos abstratos mais sofisticados como a liberdade, o Estado, a nação, e a democracia, para citar alguns exemplos que são tratados por David Koyzis mais detalhadamente em Visões e Ilusões Políticas.

Isso é tão problemático que pensadores não cristãos como Marx e Hannah Arendt viram a ideologia como um pensamento fundamentalmente errôneo por serem justamente uma “falsificação da realidade” (KOYZIS, 2014: 25). Ou seja, nenhuma ideologia política pode ser abrangente o suficiente para dar conta de toda a realidade, o que a faz substancialmente idólatra. Ao partir de um aspecto isolado ela usa óculos distorcidos para analisar a realidade. Qualquer normatividade que surja estará contaminada desde sua origem.

Contudo, as ideologias são ao mesmo tempo bastante atraentes, pois ao fragmentar a realidade elevando um de seus aspectos sobre os demais, a ideologia arma o campo de batalha, elege seus demônios e apresenta seu messias. Uma ideologia carrega, então, uma gama de ideias que transforma-se num sistema normativo para a comunidade. Mas não só isso, pois, como Koyzis afirma “a ideologia em si é fundamentalmente psicológica em sua natureza” (KOYZIS, 2014: 22), ou seja, suas raízes são mais profundas do que as ações que vemos na superfície, e é isso que nos interessa.

Uma teologia pública saudável e bem ordenada precisa reconhecer nas ideologias políticas seus aspectos idólatras. Vejamos o caso do liberalismo, onde o indivíduo autônomo torna-se soberano sobre qualquer ideia de bem comum. Assim, não há qualquer espaço para a concepção particular do bem. Koyzis resume a questão dizendo que, em favor da total liberdade o Estado não pode “convocar os cidadãos a assumir suas responsabilidades”, mas “exige que o governo subsidie o comportamento irresponsável” (KOYZIS, 2014: 77). Assim, em nome da liberdade, instituições como o casamento e a família são considerados meros contratos feitos e desfeitos a mercê de indivíduos e circunstâncias – eis a “soteriologia da liberdade”. Koyzis aborda ainda o socialismo, a democracia, o nacionalismo e o conservadorismo em sua reflexão, mostrando que todas essas ideologias têm em comum a pretensão de elevar normativamente um bem da criação sobre todos os outros.

Será preciso, então, distinguir uma ação biblicamente orientada, obediente a Jesus Cristo, e alicerçada na verdade, daquelas outras que se perdem, reduzidas aos elementos finitos da criação. Manter essa antítese é crucial para a manutenção da verdade, além de impedir que cristãos, sim, dotados de boas intenções, acabem abraçando uma ideologia igualmente idólatra apenas por parecem ser a melhor opção. Não precisamos fazer isso.

2 – PARTINDO PARA O DIÁLOGO

Reconhecer a natureza idólatra das ideologias que regem a política e a ação pública, para o cristão, é libertador. Não somos obrigados a aceitar qualquer pacote de interesses, mas podemos vislumbrar a bondade e a beleza que estão incorporadas na criação de Deus, e desfrutar delas, sem fazer-nos seus súditos. Autenticando, portanto, que há sim normatividade na Criação, mas que ela não é dada pelos interesses reducionistas dos Homens, antes, que esta lei transcende os aspectos da realidade natural vindo diretamente de Deus, e isso muda tudo.

O que está em jogo, portanto, é a vida como um todo. Aos políticos profissionais, a religião não está mais confinada à esfera privada, como esteve no período clássico grego; aos religiosos, especialmente cristãos, vale a proposição do filósofo canadense James K. Smith, citado pelo teólogo Pedro Dulci: “existe algo de político em jogo em nosso culto e algo de religioso em jogo em nossa política” (DULCI, 2018: 28). Se nosso modelo político ideológico é idólatra, como aponta David Koyzis, toda a formulação e organização pública são de fato religiosas e não apenas seculares ou laicos. Não há dualismo entre esfera pública e privada, entre o sagrado e o profano lateralmente opostos, mas uma única realidade, da qual, o cristão não pode e não precisa eximir-se em nada. Pelo contrário, ele é quem possui as categorias próprias para sondar a realidade e propor um caminho sólido em direção à verdade.

Pode soar presunção afirmar que os cristãos e a Escritura têm as respostas para aquilo que a humanidade tem se perguntado há séculos, mas não há motivo para sermos tímidos. O debate político cada vez mais flerta com as polarizações de um pensamento dualista, e isso ocorre inclusive conosco, cristãos, quando não somos capazes de identificar as ideologias como elas de fato são, desobedientes à ordem do Criador, visto que adoram a criatura no lugar do Criador (cf. Romanos 1: 25).

Portanto, igreja é lugar sim de falarmos sobre política, porque podemos valorizar a liberdade individual que os liberais tanto prezam, sem nos esquecermos da dimensão comunitária do bem comum, questão cara aos nacionalistas e socialistas, porque os óculos que utilizamos não estão distorcidos, ou melhor, conforme atesta Koyzis, “essa [nossa] cosmovisão se fundamenta na narrativa histórico-redentora encontrada na Escritura” (KOYZIS, 2014: 219). A narrativa à qual Koyzis se refere, não começa numa antropologia filosófica finita, mas numa cosmologia, ou seja, partimos do princípio que “nosso mundo pertence a Deus”, e nós somos parte dessa Criação. Sabendo disso, cientes também que essa Criação caiu em pecado se afastando do Criador, e que em Cristo tem início a redenção de toda a Criação, estamos munidos das categorias suficientes para redirecionarmos todas as coisas para Aquele que as criou, sustentou e redimiu para Si. “O alcance cósmico da redenção significa que a vida como um todo é redimida, incluindo a família, o trabalho, a recreação, a vida acadêmica e a vida política” (KOYZIS, 2014: 230).

A possibilidade do diálogo que preserva a antítese se dá no fato de que não assumimos um dos lados do dualismo político, que só empobrece, reduz e limita a discussão em opiniões acaloradas. Reconhecemos momentos de verdade em todas as coisas, segundo a graça de Deus que perpassa toda a Criação, louvamos a Deus por eles, e buscamos o reino de Deus, enquanto aguardamos sua plena manifestação.

3 – A ALMA DO NEGÓCIO

Esta terceira parte já nos encaminha para a conclusão e aqui queremos dar um passo de vital importância, sem o qual pouco se aproveitará da reflexão feita até aqui. Pedro Dulci sintetiza nossa preocupação em poucas palavras: “o que não pode acontecer é a substituição da narrativa bíblica por racionalidade neutra e universal” (DULCI, 2018: 132). E mais a frente ele mesmo afirma que “em essência, não é uma questão de escolha político-partidária, mas de regeneração do coração pela Palavra de Deus” (DULCI, 2018: 135).

Se pensarmos que toda a construção da ideologia e, por extensão, de toda atividade pública, dependem imprescindivelmente da orientação do coração humano – e por isso afirmamos acima que estamos falando de regeneração, esta categoria teológica que indica uma mudança de estado completo, antes apóstata, agora redimido – não basta criarmos as melhores plataformas políticas, nem mesmo reconhecer que nossa ação atual é idólatra, se é que isso é possível antes da regeneração do coração. Ainda que façamos isso, nosso projeto está fadado ao fracasso. “Para o cristão biblicamente correto, não existem ocupações sacras e seculares, e sim obedientes e desobedientes” (KOYZIS, 2014: 213) – porque todas as coisas serão julgadas não pelo padrão mais racional e ético ou menos idólatra, mas pelo padrão do Criador.

Sem tal reorientação do centro vital de ser humano, continuaremos buscando recursos em algo autônomo da criação, e, como o filósofo cristão dinamarquês Soren Kierkegaard diz em um de seus papers, “é tão difícil acreditar, porque é tão difícil obedecer”. O que ele quer dizer é que no mundo de Deus o ser humano está sempre diante de uma condição inescapável, à qual só é possível responder em fé obediente ou em ofensa rebelde. Não há possibilidade de indiferença.

O drama das Escrituras, emprestando o termo do teólogo americano Kevin Vanhoozer, é o ponto de partida e de chegada não só do cristão mas de toda a Criação. Seguindo a Reforma Protestante, Kierkegaard não procura sintetizar a fé e a História, ele sabe que a antítese é inevitável no estado atual do mundo, mas que Jesus Cristo é o redentor de todas as coisas. Não o Absoluto impessoal da filosofia ou da teologia Natural, que mostra-se neutro e ambíguo, mas o Deus-trino, pessoal, que vive e reina desde o coração humano, e sobre toda a sua Criação.

CONCLUSÃO

A igreja não deve guiar-se por aquilo que soa mais bíblico mas que parte de motivos idólatras que ofendem a Deus e contrariam a ordem da Criação. Jesus não era socialista, liberal ou democrata, ainda que cada uma dessas ideologias políticas tenham seus resquícios de verdade.

A responsabilidade da igreja, no entanto, está em “discipular os melhores médicos, assistentes sociais, artistas, cientistas e todo tipo de profissional relevante em sua esfera de competência” (DULCI, 2018: 152), assim, a política deixará de ser tão somente o pó desta terra, para tornar-se uma realidade viva e guiada pelo Espírito Santo, para o bem dos Homens e para a glória de Deus.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil, 3ª ed (Nova Almeida Atualizada). Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.

DULCI, Pedro L. Fé Cristã e Ação Política: a relevância da espiritualidade cristã. Viçosa/MG: Ultimato, 2018.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão Pelo Paradoxo: uma introdução à Kierkegaard. São Paulo: Novo Século, 2000.

KOYZIS, David T. Visões e Ilusões Políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. Tradução de Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova 2014.