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Historicismo, Eclesiastes e o caminho para fora da absolutização da história

Escrito por Felipe de Souza Marques, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


Introdução

O historicismo, filosofia que afirma a relatividade histórica de todas as crenças (DOOYEWEERD, 2015, p. 78), atua como uma pressuposição e orientação na cosmovisão moderna. Para Herman Dooyeweerd, o efeito do historicismo não pode ser minimizado, visto que aponta para o surgimento de uma das maiores crises da cultura ocidental (DOOYEWEERD, 2018, n.p.).

A teologia cristã contemporânea está em profundo diálogo com o historicismo, como podemos perceber no desenvolvimento do protestantismo liberal. A história do dogma, cujo representante central foi Adolf von Harnack, demonstra de maneira especial a influência historicista no estudo teológico. A crítica de Harnack ao dogma cristão, por exemplo, é profundamente enraizada na localização histórica onde o dogma se origina, a saber, o mundo helênico (MCGRATH, 2015, p.171). Embora a história do dogma tenha trazido vigorosas contribuições, o ceticismo historicista anda esperando quem possa tragar.

O presente artigo visa refletir sobre a natureza do historicismo e como os cristãos podem se proteger dele. Para isso, abordará no primeiro tópico a tentação historicista, fazendo um paralelo com o dilema enfrentado pelo autor de Eclesiastes. No segundo tópico, o artigo desenvolverá uma proposta de entendimento do tempo que confronte o historicismo. Por fim, o artigo se encerrará com as considerações finais.

O pregador e a tentação historicista

O historicismo, como citado anteriormente, afirma a relatividade histórica de todas as crenças. Nesse sentido, valores, religiões, conhecimentos e tantos outros aspectos da realidade são esvaziados de um significado último, sendo verdadeiros ou falsos apenas na medida em que fazem sentido para determinado período histórico e cultural. A verdade, nessa corrente filosófica, seria apenas uma questão de localização histórica.

Como movimento intelectual, o historicismo foi uma reação à pretensão iluminista de alcançar uma razão que fosse onipotente e suficiente para julgar todos os outros períodos históricos e culturais (DOOYEWEERD, 2015, p. 126). Os historicistas perderam a confiança na teoria hegeliana de progresso, enfatizando que as experiências históricas são apenas diferentes, mas não melhores ou piores. Como observou Dooyeweerd, segundo os historicistas,

“O que é a própria crença humana, […], senão o produto histórico de uma mente particular da cultura? O que mais são as chamadas ideias eternas do que ideias derivadas de nossa civilização ocidental, refletindo o curso particular do desenvolvimento histórico?” (DOOYEWEERD, 2018, n.p.).

Embora o historicismo envolva discussões profundas e abrangentes, o lócus da discussão parece estar situado na absolutização do aspecto histórico como parâmetro final para o entendimento de toda a realidade humana. Nas palavras de Dooyeweerd, “o historicismo radical faz do ponto de vista histórico algo oniabrangente, absorvendo todos os outros aspectos do horizonte da experiência humana” (DOOYEWEERD, 2018, n.p.).

Qoheleth, o pregador de Eclesiastes, passa por um dilema semelhante. O primeiro capítulo é iniciado com uma submissão de vários aspectos da realidade ao aspecto histórico, o que aparentemente solaparia seu valor interno. “Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre” (Eclesiastes 1.4), é como o pregador começa a tentar provar o seu ponto, a saber, que não há proveito em tudo o que fazemos.

De Eclesiastes 1.4 a 1.11 vemos o autor discorrer sobre a mesmice da natureza (Ec 1.5,6), a insatisfação constante, ilustrada pelo fato de o mar nunca se encher (Ec 1.7), a repetição de tudo o que já aconteceu algum dia (Ec 1.10) e o sumiço da maioria dos feitos e realizações (Ec 1.11). Em todas essas descrições podemos experimentar, com o pregador de Eclesiastes, a mesma tentação historicista do período moderno, embora se diferencie em alguns detalhes. Enquanto a tentação historicista moderna se concentre na mudança constante de todas as coisas, o pregador de Eclesiastes enfatiza a mesmice de todas as coisas. Ambos os exemplos, contudo, partem de uma premissa reducionista da experiência humana, ocasionando a atrofia e a consequente idolatria de algum aspecto.

Uma consideração precisa ser feita, visto que tratamos do texto sagrado. O autor de Eclesiastes, Qoheleth, constrói um sólido cenário da falta de valor em uma vida que considera apenas a existência “debaixo do sol”. Como bem observa Derek Kidner, “ele se coloca – e a nós – no lugar do humanista ou do secularista. […] Da pessoa que começa a pensar a partir do homem e do mundo visível e que conhece Deus apenas à distância” (KIDNER, 1989, p. 5). Ele demonstra, portanto, a vaidade da vida quando isolada em seu aspecto histórico. Ora concluiremos que nada possui real valor, visto que o fluxo de mudança é muito alto, ora concluiremos que nada possui valor, visto que não existe verdadeira mudança.

Uma perspectiva para fora da absolutização temporal

O historicismo, como já observado, pode ser entendido como uma absolutização do aspecto histórico. Nesse sentido, o historicismo encerrou todas as coisas debaixo do desenvolvimento histórico e relativizou todos os valores presentes. Como pontuou Dooyeweerd, em uma visão historicista não existe uma diferença de valor entre fascismo e nacional-socialismo, tampouco outros valores compartilhados pela sociedade moderna, como democracia e direitos humanos (DOOYEWEERD, 2015, p .83).

Se Qoheleth desnuda a idolatria ao aspecto histórico, particularmente presente em uma era secular, ele também esclarece o caminho para fora dessa idolatria, a saber, uma vida que não se limita ao “debaixo do sol”, mas se move, por muitos meios, para acima do sol. Conforme destacado pelo teólogo Tim Keller, o autor de Eclesiastes “tenta descobrir um modo de encontrar todo seu consolo, felicidade e sentido dentro dos limites deste mundo material” (KELLER, 2018, p. 104). O resultado, como menciona Keller, “é que todos falham em dar sentido diante das realidades da vida e da morte” (KELLER, 2018, p. 2018).

Se o que fundamenta o historicismo é uma idolatria do aspecto histórico que nos introduz em uma realidade reducionista, parte da saída se dá pela estrada do temor a Deus e da contemplação de seu controle sobre o tempo. Foi o que fez o autor de Eclesiastes, quando se virou para o governo de Deus sobre o tempo após ter observado as diversas fases que enfrentamos em nossa existência. Se de um lado há “tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou” (Ec 3.2), de outro sabemos que “tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante dele” (Ec 3.14).

O temor a Deus, característica daquele que não enxerga a vida tendo como referência apenas um aspecto da realidade, possibilita a contemplação de uma história para além do historicismo. Permite adentrar o terreno do significado, solapado pelo historicismo radical. Como destacou Dooyeweerd,

“Não haveria esperança futura para a humanidade e para todo o processo de desenvolvimento cultural humano, se Jesus Cristo não se tivesse tornado o centro espiritual da história mundial e o seu Reino o fim último desta. Este centro e finalidade da história mundial não se limitam à civilização ocidental ou a qualquer outra. Mas conduzirão a nova humanidade como um todo ao seu verdadeiro destino, uma vez que já conquistou o mundo pelo amor divino revelado em seu autossacrifício” (DOOYEWEERD, 2018, n.p.).

Considerações finais

O historicismo, embora tenha trazido certas contribuições, introduziu uma enorme crise na sociedade ocidental. Para os cristãos, ele envolve até mesmo a veracidade das doutrinas cristãs, sendo por isso um assunto da mais profunda importância. Há muitos milênios o autor de Eclesiastes registrou o dilema de encontrar valor diante das mudanças ou mesmices históricas. O mesmo autor, contudo, apontou para o significado que brota do temor ao Deus da história. Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento histórico não solapa o valor daquilo que se manifesta historicamente, a menos que absolutizemos o aspecto histórico, assumindo a vida debaixo do sol como normativa.


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Referências

BÍBLIA SAGRADA. Revista e Atualizada. Trad. João Ferreira de Almeida. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções secular, pagã e cristã. Trad. Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Cultura cristã, 2015, 256 p.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília – DF: Editora Monergismo, 2018, 276 p.

KELLER, Timothy. Deus na era secular: como os céticos podem encontrar sentido no cristianismo. Trad. Jurandy Bravo. São Paulo – SP: Vida Nova, 2018, 320 p.

KIDNER, Derek. A mensagem de Eclesiastes. Trad. Yolanda Mirdsa Krievin. São Paulo – SP: ABU Editora, 1989, p. 56.

MCGRATH, Alister. A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária. Trad. A. G. Mendes. São Paulo – SP: Vida Nova, 2015, 256 p.

REIS, José Carlos. O historicismo: a redescoberta da História. Locus: Revista De História 8 (1). 2002. https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20551.