Escrito por Felipe de Souza Marques, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022
Introdução
O presente artigo aborda a relação entre o preconceito iluminista contra a tradição e o enfraquecimento da doutrina no cristianismo moderno. O objetivo é apresentar a necessidade de resgatar a doutrina como definidora da identidade cristã, mesmo em um período cultural marcado pela suspeita em relação ao papel da doutrina e da tradição.
Kevin Vanhoozer, importante teólogo cristão, ressalta o desaparecimento da doutrina na igreja cristã contemporânea (VANHOOZER, 2016, p. 11). As causas para isso, como ele mesmo apresenta, são variadas. Nesse sentido, o Iluminismo inaugurou muitos dos dilemas que vivenciamos atualmente em relação ao papel da doutrina e da tradição, conforme será apresentado. O pensamento iluminista produziu efeitos profundos na sociedade e também no cristianismo e, por isso, é motivo de constante análise.
Para tal investigação, o presente artigo se estruturará em três tópicos. No primeiro, será abordada a relação do Iluminismo com a doutrina e a tradição. No segundo tópico, a necessidade do resgate da doutrina como definidora da identidade cristã. Por fim, o artigo se encerrará com as considerações finais.
1. O iluminismo e a suspeita com a doutrina e a tradição
Diante da amplitude do movimento Iluminista, não é tarefa fácil trazer uma definição definitiva ou que englobe todos os seus aspectos. Para McGrath, o Iluminismo é caracterizado por uma nova postura em relação ao uso da razão, instrumentalizada para o combate aos mitos que, segundo eles, impediam a sociedade de alcançar o tão desejado progresso (MCGRATH, 2005, p. 125).
O dicionário de cristianismo e ciência destaca algumas características principais do Iluminismo, entre elas, a forte ênfase na autonomia da razão e da ciência para chegar ao conhecimento das grandes questões humanas e a crença no progresso da humanidade (COPAN, 2018, p. 411).
Com sua forte ênfase em torno da suposta autonomia racional individual e da primazia das experiências sensoriais presentes, o Iluminismo plantou uma grande dúvida em relação ao conhecimento oriundo da tradição (MCGRATH, 2015, p. 166). Conforme colocado por McGrath, o Iluminismo carregava a pretensão de alcançar um ponto de vista livre e universal, autorizado para avaliar todas as doutrinas e tradições do passado e do presente, enquanto estava cego para a ideia de que o próprio Iluminismo fazia parte de uma tradição específica (MCGRATH, 2015, p. 215).
Conquanto alguns ainda tentem sustentar que o Iluminismo foi o despertar para a iluminação humana, muitos autores já chamaram a atenção para o fato de que o Iluminismo trouxe uma nova história, com seu próprio corpo doutrinário e sua própria tradição. N.T. Wright observou que o conflito entre o Iluminismo e o cristianismo teve sua origem na percepção de que a história definitiva para a transformação do mundo é a da Europa do século XVIII, não a de Jesus de Nazaré (WRIGHT, 2019, p. 179). Segundo ele, a consequência foi a redução do cristianismo a um conjunto de ensinamentos morais (WRIGHT, 2019, p. 180).
A dúvida lançada contra a tradição foi um desenvolvimento natural do individualismo, característica crucial do Iluminismo. A experiência presente é colocada em um pedestal de confiança, enquanto os ensinamentos que recebemos são sempre duvidosos (MCGRATH, 2015, p. 166). A confiança dos pensadores Iluministas fica particularmente evidente nesse ponto, visto que assumiam a possibilidade da aceitação de algumas tradições, contanto que fossem corrigidas. A pergunta inevitável é: corrigidas segundo qual parâmetro? Segundo a experiência contemporânea (MCGRATH, 2015, p. 167). Diante disso, podemos entender a crítica Iluminista aos milagres. O pano de fundo é a profunda confiança na autonomia da razão humana e a suspeita com o passado.
Essa racionalidade exclusiva, crença de que nenhum tipo de conhecimento merece confiança a menos que seja possível provar por meio da experiência, trouxe sérias limitações para a vivência tão multifacetada que carregamos conosco. Em primeiro lugar, não conseguimos sustentar esse padrão para toda a existência. Alguém assim não conseguiria acreditar em praticamente nada (KELLER, 2018, p. 51). Em segundo lugar, as estruturas de racionalidades não surgem num vácuo histórico, mas são formadas a partir de “fatores como a existência social e a linguagem, de modo que o ‘indivíduo racional autônomo’ — critério sobre o qual a epistemologia do Iluminismo deposita tanto peso — talvez precise ser entendido como um construto social” (MCGRATH, 2015, p. 169).
Todo o preconceito Iluminista com a tradição acabou por formar um ambiente favorável ao enfraquecimento doutrinário. Isso porque “como a doutrina decorre do confronto com a tradição relativa a Jesus de Nazaré, doutrina e história são inseparáveis” (MCGRATH, 2015, p. 202). Embora a discussão sobre a relação entre doutrina e tradição esteja em aberto, nós recebemos a fé cristã “por meio da tradição histórica, transmitida e propagada por meio de uma comunidade de fé” (MCGRATH, 2015, p. 202). Portanto, a premissa antitradição do Iluminismo também é uma reação antidoutrinária.
O que significa, então, dizer que houve um enfraquecimento doutrinário? Significa que a história de Jesus de Nazaré deixou de ser o explicandum (termo utilizado por McGrath) basilar para a identidade cristã. Outras histórias passaram a ser a pedra angular, ocasionando uma deturpação e fragmentação da identidade cristã ligada à história de Jesus de Nazaré.
Se as formulações doutrinárias eram condicionadas historicamente e a razão humana era suficiente, como propuseram os iluministas, os cristãos deveriam abandonar ou reconstruir as doutrinas cristãs à luz da razão e da experiência, lócus da autoridade a partir do Iluminismo. Algumas consequências teológicas foram a reinterpretação da identidade de Jesus Cristo, a reflexão sobre a possibilidade dos milagres e o surgimento de movimentos teológicos seguindo diversas linhas, como o romantismo, o marxismo, o protestantismo liberal e a teologia da libertação (MCGRATH, 2005, p. 129 – 155).
Todas essas linhas são caracterizadas por um rompimento com o passado e o enfraquecimento de doutrinas do núcleo mais duro do cristianismo. A doutrina seria, nesse novo contexto, ora relegada ao ostracismo, ora diluída até o limite.
2. A necessidade de resgatar a doutrina como definidora da identidade cristã
Segundo Vanhoozer, a doutrina não é um assunto meramente abstrato e sem concretude, mas “a essência da vida real” (VANHOOZER, 2016, p. 18). Se, para os cristãos, a verdadeira vida está em Cristo, “o propósito da doutrina é conduzir-nos com precisão por esse caminho” (VANHOOZER, 2016, p. 18).
A doutrina faz afirmações de verdade (MCGRATH, 2015, p. 55) e orienta nossa atuação no grande drama da redenção (VANHOOZER, 2016, p. 118). Como seres finitos e dotados de uma localização histórica limitada, não temos todas as opções diante de nós e tampouco podemos conhecer todas as coisas, seja por meio da razão ou da experiência sensorial. Como colocou Vanhoozer, “sem ajuda, a razão não pode nos dizer por que estamos aqui nem o que devemos fazer” (VANHOOZER, 2016, p. 17). Da mesma maneira, a experiência. Sem ajuda, ela não pode nos dizer por que estamos aqui nem o que devemos fazer.
A crise moderna da falta de sentido é também a crise do sumiço da doutrina, visto que “a doutrina cristã, consequência ponderada da busca de entendimento bíblico empreendida pela fé, responde a cada uma dessas condições culturais e espirituais” (VANHOOZER, 2016, p. 18).
Se a doutrina, como pontuou McGrath, confere identidade à comunidade (MCGRATH, 2015, p. 56), a ausência da doutrina insere essa comunidade em um vácuo existencial. Contudo, “tanto a natureza quanto a sociedade abominam o vácuo, e há muitas ideologias e agendas esperando para correr e encher a mente e o coração dos descompromissados” (VANHOOZER, 2016, p. 19). Portanto, o resultado natural de uma igreja que abdicou da doutrina é a importação de outras histórias como definidoras para a identidade da comunidade.
Considerações finais
O Iluminismo deixou sua marca tanto na sociedade quanto na igreja do mundo moderno. Desde o seu surgimento, a tradição e a doutrina enfrentaram um forte enfraquecimento, ocasionando diversas introduções ideológicas e narrativas na comunidade cristã, bem como uma crise existencial oriunda da falta de direção.
Sem a doutrina, a diferenciação da igreja em relação ao mundo e o cumprimento de sua tarefa exclusiva ficam nitidamente prejudicado. Desde o primeiro século, a igreja se diferencia de qualquer outra instituição humana por meio da demarcação da doutrina (MCGRATH, 2015, p. 59). A conclusão natural, portanto, é que, desprovida da doutrina, a igreja deixa de realizar sua tarefa exclusiva e perde sua identidade particular, recebida por intermédio de seu “compromisso com a história de Jesus” (VANHOOZER, 2016, p. 109).
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.
Referências
COPAN, Paul. Dicionário de cristianismo e ciência: obra de referência definitiva para a interação entre fé e ciência contemporânea. Trad. Paulo Sartor Jr.. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.
KELLER, Timothy. Deus na era secular: como os céticos podem encontrar sentido no cristianismo. Trad. Jurandy Brawo. São Paulo: Vida Nova, 2018.
MCGRATH, Alister E. A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária. Trad. A.G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2015.
MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. Trad. Marisa K.A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.
WRIGHT, Nicholas T. Como Deus se tornou rei. Trad. Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.