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Na Política do Espetáculo: Ideologia, Mídia e a Presença Cristã

Escrito por Bruno Maroni, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020.

POLÍTICA E ESPETÁCULO

Os memes e a lacração são determinantes na campanha eleitoral. O posicionamento político entra no script dos artistas pop. Youtubers assumem a referência nos discursos, discussões e decisões políticas. A politização vira bio e as timelines, fóruns definitivos. É claro que política e comunicação, como componentes sociais, estão há muito vinculadas. Essa interface não é novidade. Conforme escreveu o professor de comunicação, Luís Mauro Sá Martino, “As relações entre cultura popular e mídia não são um tema novo, mas, na medida em que as fronteiras entre os elementos vão se diluindo, um número crescente de estudos procura dar conta dessa relação.” (2019, p. 170). 

O que vemos em curso é uma dissolução da simetria política e, notavelmente, o cruzamento do político (tanto dos representantes públicos quanto do povo como agente político) com a mídia de massa e o entretenimento. O político é espetáculo. Particularmente, o que nos interessa aqui é o primeiro grupo. A pergunta é: o que há entre a política e o entretenimento? Na verdade: de que modo a indústria do entretenimento opera na formação, ação e repercussão política das figuras públicas? Precisamos clarear os termos e articular as ideias. Política e espetáculo. Do que estamos falando? Para pensar a respeito, primeiro vamos falar do que move a política, as ideologias (e sobre como somos movidos por elas). Depois, acerca de como motivos ideológicos viram espetáculos celebrizados. E, por último, sobre porque a política que assistimos não pode (e nem deve) ser a política que desejamos.

O MERCADO DAS IDEOLOGIAS

Nosso dia a dia é invadido por uma série de frenéticos choques de ideias, dos mais triviais aos mais atípicos. Certamente esses choques ocupam também o cenário político. Mesmo que eu e você, ou você e qualquer outra pessoa, vivenciem um mesmo ocorrido, pisem no mesmo chão, interpretações distintas complicam o diálogo e, no pior dos casos, o compromete totalmente. Aí estão as ideologias. Falando de política, é ingênuo esperar que razoabilidade por si só resolva os conflitos de uma vez por todas. Isso porque, de acordo como cientista político David Koyzis, “ambos os lados se pautam por visões diferentes da realidade, alicerçadas em paradigmas mutuamente excludentes.” (2014, p. 10).

Certo, mas de onde as ideologias vêm e por que elas acontecem? Os primeiros usos de “ideologia” se referiam, conforme o próprio termo, ao estudo das ideias, do que são compostas. Entretanto, seguindo as ênfases posteriores de Karl Marx, Karl Mannheim, Hannah Arendt, Václav Havel e Bernard Crick (claro, com sucessivas variações), “ideologia” assumiu a noção predominante de uma concepção equivocada do mundo, uma simplificação da realidade e justificativa para ações (KOYZIS, 2014, p. 26). Max Skidmore resumiu como: “uma forma de pensamento que dá aspecto simples a um esquema de ideias políticas complexas, de modo a inspirar a ação em busca de certos objetivos” (apud KOYZIS, 2014, p. 26).

Existe, porém, algo de religioso que move qualquer ideologia como conjunto político e que, principalmente, faz com que elas nos movam, muitas vezes, visceralmente. As ideologias pressupõem aspectos religiosos porque, seja qual for (ex.: liberalismo, conservadorismo, marxismo) identifica um problema no mundo (tirania, anarquia, pobreza) e se apega a um meio para salvá-lo/redimi-lo. Mas, recorrendo a paradigmas de redenção localizados no próprio mundo transtornado, os diferentes projetos ideológicos incorrem em incoerências e até mesmo ações que suprimem a humanidade ao contrário de promover o bem comum, que deveria ser o horizonte de uma iniciativa política. O problema é mais profundo – não se resolve nas redes sociais. 

Contudo, o que vincula o vício ideológico de hoje em dia à amplificação midiática? Bem, as ideologias devem boa parte de sua promoção aos movimentos políticos de massa. Com o advento da comunicação em larga escala, a tensão ideológica concentrada nas décadas de Guerra Fria e a popularização do debate político, as ideologias foram massivamente confeccionadas, opiniões prontas para o consumo no mercado das ideias, gradativamente mais ecléticas e, inevitavelmente, incoerentes (KOYZIS, 2014, p. 31). Vale reconhecer, porém, que a disseminação midiática de temas políticos não corresponde à maturidade política. A politização da vida não é o mesmo que a ação política para o bem comum. Enquanto na primeira há hipersensibilidade, incapacidade de diálogo e polarização, na segunda há compreensão, comunidade e promoção de capital moral – capacidade de conexão virtual. Agora, como ficam os próprios políticos nesse cenário?

CELEBREMENTE POLITIZADOS

Se no mercado das ideias a reflexão política se converte em opinião consumível e a ação política se torna reivindicação de identidade, então o êxito político é distorcido à repercussão. Ora, para vender a história, é necessário um personagem para divulgá-la. Aqui os políticos viram celebridade. De onde vêm as celebridades e o que as configura? 

Se considerarmos “célebre” quem realizou algo notável em determinada sociedade, podemos até dizer que o reconhecimento, a “celebração” a alguém, acompanha o desenvolvimento cultural humano. No entanto, o “caminho” da celebridade mudou de rumo particularmente no século 20, mais uma vez, decorrente da amplificação midiática. Se antes as pessoas faziam alguma coisa e por causa disso se tornavam conhecidas, agora, elas “se tornam conhecidas por qualquer motivo e depois fazem algo memorável. Às vezes.” (MARTINO, 2019, p. 161). Steve Turner diz em Engolidos Pela Cultura Pop: “Há pouco tempo pensava-se que as celebridades tinham coisas relevantes a dizer sobre suas áreas específicas de interesse; hoje valorizamos sua opinião sobre qualquer coisa.” (2013, p. 106).

Nessa transição nos deparamos com o seguinte incômodo: se a fama independe dos feitos e virtudes, eles caem em desuso. De fato, na indústria das celebridades, a qualidade de um discurso, por exemplo, é menos rentável. O que se torna imprescindível é o espetáculo. Ninguém melhor para explicar isso do que Guy Debord, autor do clássico A Sociedade do Espetáculo. O autor francês afirma: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação.” (2013, p.13-14). Mais à frente ele explica:

[…] o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. (2013. p. 14)

Luís Martino esclarece que no centro do conceito da sociedade do espetáculo, de Guy Debord, está a “perturbadora concepção de que, no hipercapitalismo todas as coisas se transformam em imagem. […] Em uma sociedade do espetáculo as relações pessoais são organizadas no sentido de uma avassaladora troca de imagens.” (2019, p. 225). Logo percebemos que o sistema do espetáculo coopta as atividades políticas, de modo que ela se torna espetáculo visual.

Podemos notar cotidianamente as mutações decorrentes desse processo de “espetacularização” da política. Por exemplo: o diálogo cuidadoso de ideias é trocado por slogans – ou, exaustivamente, pela lacração, a “fala arrebatadora” que encerra o debate. E também, os eventos políticos, comícios, por exemplo, são meticulosamente imaginados, configurados como espetáculo cativante, seja ele carismático ou combativo. Além disso, o que muito nos interessa aqui: o político se transforma em celebridade: “O cenário das atividades políticas parece confluir com o das celebridades da mídia, em uma exposição que aproxima a democracia com os limites do entretenimento.” (MARTINO, 2019, p. 172).

NA PÓLIS DO ESPETÁCULO

Em A Guerra dos Espetáculos: o Cristão na Era da Mídia, o teólogo americano Tony Reinke observa como a hiper midiatização foi influente na disputa eleitoral nos EUA em 2016, e como isso elegeu Donald Trump. De acordo com Reinke, Trump, que antes mesmo de sua incursão política já era uma celebridade, “deliberadamente e estrategicamente confiou em sua mágica de criar espetáculos.”. Além do mais, “Trump sabe que o decoro presidencial é agora uma fornalha pequena demais para acender o fogo necessário para capturar o voto das massas na era da mídia.” (2020, p. 37). Essa é uma observação elementar. As falas agressivas, despudoradas e impulsivas do presidente americano, suscitaram amplo incômodo do público, tanto em sua campanha quanto em seu mandato.

O ponto é que, indevidamente (e infelizmente), o belicoso, desrespeitoso e escandaloso “fazem parte do show” – e é elogiado pelo público tão aguerrido quanto a celebridade em questão. Isso tem relação com o que o filósofo Byung Chul-Han, em No Enxame, descreve como “tempestade de indignação”, campanhas virtuais caóticas difamatórias abastecidas pela indignação generalizada (2018, p. 14). O poder da performance política nesse contexto foi muitíssimo bem analisado no artigo The Hands of Donald Trump: Entertainment, Gesture, Spectacle (As Mãos de Donald Trump: Entretenimento, Gestos e Espetáculo): “habilidade de reunir formas de extravagância semiótica outrora distintas (reality shows, concursos de beleza, partidas de luta livre) e inseri-las em sua candidatura […] é, precisamente, o que faz de Trump um espetáculo infindável.” (2016, p. 92).

Ora, rápidas aproximações são possíveis ao exercício político de Jair Bolsonaro, chefe de Estado brasileiro. Além das afinidades ideológicas com Trump, podemos dizer que Bolsonaro se assemelha ainda mais performaticamente falando.

No caso de Bolsonaro, que antes da ascensão política não dispunha da mesma fama do americano, as redes sociais – que concentram micro espetáculos – foram determinantes para a confecção de uma celebridade política. Sabemos que muito do material político que circula no ambiente digital é irreal às últimas consequências (ou, popularmente falando, fake News), concluímos também que a credibilidade das informações é ofuscada por motivos não só midiáticos, mas religiosos. Afinal, lembrando do aspecto religioso que impulsiona a cultura da celebridade, concordar com qualquer político deixa de ser uma questão de compatibilidade de ideias e aprovação de propostas, mas apego religioso a um “herói” ou figura de redenção.  Podemos dizer que celebrização dos profissionais públicos e sua consequente idolatria ideológica no governo é drasticamente estimulada pelo uso indevido das redes sociais e meios de comunicação de modo geral.

Essa é uma das ênfases de E a Verdade os Libertará: Reflexões Sobre Religião, Política e Bolsonarismo, escrito por Ricardo Alexandre, jornalista brasileiro. Falando sobre a relação do político com o discurso evangélico messiânico, que segundo é a de “alimentá-la no que ela tem de pior”, Ricardo discorre:

Pode parecer paradoxal, mas os editores adoram isso: em um mundo abarrotado de informação, são bizarrices como essas que geram cliques e compartilhamentos. Enquanto estamos entretidos com o show de horrores as primeiras páginas, os projetos de lei e as medidas econômicas que realmente impactam a vida do cidadão comum vão para algum canto das páginas internas. (2020, p. 59)

Bem, existe uma alternativa antagônica a essa distorção das dinâmicas políticas e capaz de retomar o bem-estar público? Sendo mais específico: a igreja cristã, compromissada com o evangelho e legitimamente preocupada com a sociedade, pode contribuir para os reajustes necessários? Sim. Para isso, a presença pública é imprescindível. Mas o como estar presente entre as redes da polis do espetáculo faz toda a diferença.

POLÍTICA PARA JUSTIÇA

Ao contrário da imposição religiosa, uma distorção das esferas política e eclesiástica, precisamos investir não no engajamento coercitivo, mas na participação compassiva, que discerne as difusões da cultura conectada, politicamente polarizada e socialmente descontrolada. O teólogo croata Miroslav Volf aponta um rumo para essa presença intencional em Uma Fé Pública: Como o Cristão Pode Contribuir Para o Bem Comum. Volf reconhece: “A internet pode ser um caso paradigmático da ‘cultura do controle diminuído’. […] novas formas de autoridade, alheias aos ‘fluxos normais de autoridade ou processos tradicionais de veto’, aparecem e desaparecem.” (2018, p. 107). Para as comunidades cristãs, portanto, a opção é “influenciar sociedades contemporâneas sobretudo de dentro para fora” (2018, p. 107). Isso nos encaminha uma reflexão final: a ressignificação da política para longe dos espetáculos e a presença pública pela discrição.

O que é a política? Qual é o propósito do Estado como agenciador político? Mais uma vez David Koyzis nos auxilia nesta reflexão. Koyzis define: “O Estado é responsável por proteger as responsabilidades diferenciadas nas diversas esferas da sociedade, incluindo esferas individuais e comunitárias.” (2014, p. 314). Em resumo: a missão do Estado (ou da política no geral) é a conservação e promoção de justiça em uma sociedade plural visando o bem comum. Koyzis conclui: “a justiça é uma qualidade que define o Estado e fundamenta sua autoridade política peculiar.” (2014, p. 301). Para desempenhar esse propósito, é preciso discernir os riscos ideológicos reducionistas e resistir à cooptação da política por parte do aspecto econômico e estético da sociedade – tornar as ideias mercadoria e a ação política performance.

Dentre as tentações do protagonismo na sociedade do espetáculo (que termina em pseudoatividade), discípulos e discípulas de Jesus, para servir à cidade com criatividade e fidelidade, devem aprender a disciplina do silêncio, dar um passo para trás. Quem explica isso é Pedro Dulci, em Fé Cristã e Ação Política: a Relevância Pública da Espiritualidade Cristã:

[…] é precisamente este passo para trás que eu estou convidando o leitor a dar. Parar de opinar o tempo todo nas redes sociais ou mesmo de agir constantemente sem pensar nas estruturas mais básicas da realidade evitará que continuemos a dissipar toda nossa energia política em respostas inócuas – para não dizer contraditórias com nossa fé. […] antes de agir, pare e preocupe-se com aquilo que é fundamental. (2018, p. 113)


Convém, por fim, cultivarmos a consciência de que a presença pública cristã se dá de forma mais discreta, silenciosa e simples, do que percebemos ou pretendemos. E é justamente por isso que ela tem profundo potencial transformador. A genuína ação cristã como alternativa aos vícios políticos de hoje será efetiva quando formada vivacidade comunitária da igreja local, na prática da sabedoria, que lê a Bíblia para ler a política, e encena a semelhança com Jesus e o fruto do Espírito, como cidadãos que anseiam por justiça, exercitam o diálogo compassivo e concretizam o amor.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Ricardo. E a verdade os libertará: reflexões sobre religião, política e bolsonarismo. São Paulo: Mundo Cristão, 2020.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

DULCI, Pedro Lucas. Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã. Viçosa-MG: Ultimato, 2018.

HALL, Kira; GOLDSTEIN, Donna M; INGRAM, Matthew Bruce. The Hands of Donald Trump: Entertainment, Gesture, Spectacle. Disponível em < https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdfplus/10.14318/hau6.2.009>. Acesso em 30 de ago. de 2020.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. Petrópolis-RJ: Vozes, 2018.

KOYZIS, David T. Visões & ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. Trad. Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014.

MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da comunicação: ideias, conceitos e métodos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2019.

REINKE, Tony. A Guerra dos espetáculos: o cristão na era da mídia. Trad. Vinícius Silva Pimentel. São José dos Campos-SP: Fiel, 2020.

TURNER, Steve. Engolidos pela cultura pop – arte, mídia e consumo: uma abordagem cristã. Viçosa-MJ: Ultimato, 2013.

VOLF, Miroslav. Uma fé pública: como o cristão pode contribuir para o bem comum. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2018.


1 comment

  1. Marcos goes

    Ótimo trabalho!
    Após perder muito tempo na internet encontrei esse blog
    que tinha o que tanto procurava.

    Parabéns, Gostei muito.
    Meu muito obrigado!!!

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