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O que Atenas tem a ver com o Vale do Silício? Traçando um paralelo entre filosofia e computação

Escrito por Pedro Rendeiro, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


Tertuliano, um dos pais da igreja cristã, é conhecido por se ocupar com o questionamento: “O que Atenas tem a ver com Jerusalém?”, ou “O que a filosofia tem a ver com a teologia ou religião?”. Analogamente, alguém pode levantar a seguinte pergunta: “O que Atenas tem a ver com o Vale do Silício?”, ou “O que a filosofia tem a ver com a tecnologia?”. Existem várias maneiras de traçar a resposta para uma pergunta como essa.

Se existe uma característica comum entre filosofia e computação, é a onipresença que ambas apresentam no século XXI. Hoje existe a computação ubíqua, caracterizada como um conjunto de sistemas computacionais invisíveis, espalhados por toda parte e capazes de trocar informação entre si. De forma análoga, é possível identificar que sempre existem vertentes filosóficas subjacentes a qualquer produção cultural contemporânea.

Existe uma relação ainda mais sutil entre essas duas áreas. Para perceber isso, tomaremos como referência a teoria do filósofo cristão Herman Dooyeweerd e o paradigma de programação atribuído ao matemático Alan Kay. No texto a seguir, será apresentada uma breve descrição das criações destes dois estudiosos, bem como o paralelo curioso e pouco explorado entre ambas.

A análise modal de Herman Dooyeweerd

O holândes Herman Dooyeweerd (1894–1997) foi um influente filósofo e representante do movimento reformacional de filosofia. Em sua obra magna, Uma nova crítica do pensamento teórico1, Dooyeweerd propõe um modo de fazer filosofia que questiona a neutralidade do aparato cognitivo do ser humano. Ao fazer isso, ele estabelece uma distinção importante entre a atitude teórica do pensamento e a experiência ingênua da realidade:

Ela [a atitude teórica] apresenta uma estrutura antitética na qual o aspecto lógico de nosso pensamento opõe-se aos aspectos não lógicos de nossa experiência temporal […]. Dentro da ordem temporal, essa experiência apresenta grande diversidade de aspectos fundamentais, ou modalidades. (DOOYEWEERD, 2018, p. 47)

Note que o filósofo afirma que a realidade é composta de vários aspectos. Na experiência ordinária, porém, estes são inseparáveis, de modo que o ser humano sempre os experimenta de forma sintética. Tais modos fundamentais se tornam visíveis apenas no momento em que análises teóricas são realizadas, à semelhança da luz branca, que se divide em diversas cores ao atravessar um prisma.

“O fato de existirem diversos modos irredutíveis aponta para uma inferência necessária: nenhum desses modos pode ser absoluto” (FREIRE, 2018). Nesse sentido, Herman Dooyeweerd reconhece que o pensamento teórico jamais será capaz de abranger de uma só vez todos os aspectos da realidade. É necessário abstrair – recortar – determinado aspecto para então analisá-lo. Esse ponto é fundamental para entender a relação entre filosofia e computação que começaremos a traçar a seguir.

A orientação a objetos de Alan Kay

O estadunidense Alan Kay é um premiado matemático com importante atuação na ciência da computação. Ele é tido como principal responsável pela criação da Programação Orientada a Objetos (POO), um paradigma de programação suportado pelas principais linguagens de codificação modernas.

Uma das principais características dessa forma de escrever programas envolve os conceitos de classes, atributos e objetos. Imagine uma classe como um modelo genérico de um objeto físico – por exemplo, um caderno. Esse modelo genérico é construído a partir de métodos e atributos. Para nossos propósitos, interessam apenas os atributos, os quais são informações que caracterizam o objeto físico – cor, número de páginas, dimensões e outras coisas semelhantes. Perceba que a quantidade de atributos possíveis é ilimitada, mas que é impossível contemplar todos eles em um único programa; afinal, não é possível armazenar informação ilimitada em um dispositivo de armazenamento finito. Sendo assim, cabe ao analista decidir quais são os atributos mais relevantes para sua aplicação. Finalmente, quando o programador atribui valores específicos para os atributos de uma classe, é criado um objeto – por exemplo, um caderno azul, de 150 páginas, 21 centímetros de largura e 28 de comprimento.

A este ponto, deve estar claro que essa forma de escrever programas de computador se adequa à visão multiforme da realidade defendida por Herman Dooyeweerd. Não há indícios de que o trabalho de Alan Kay tenha sido influenciado por esse filósofo. Contudo, é razoável concluir que a programação orientada a objetos requer uma visão do cosmo que reconheça a existência de múltiplos aspectos e a necessidade de fazer abstrações – recortes – a fim de computar dados extraídos do mundo físico.

Trabalhos relacionados

Sem dúvida, ainda há espaço para muitos desdobramentos nos estudos envolvendo computação e a teoria de Herman Dooyeweerd. Contudo, existem esforços nessa direção publicados e precisam ser mencionados.

A contribuição que mais se assemelha a esse artigo faz relação entre a teoria dos aspectos modais e o paradigma de Programação Orientada a Aspectos (POA), uma variante da POO. O autor acredita que pode haver grande benefício, tanto para a POA quanto para a filosofia de Dooyeweerd, caso os potenciais benefícios de cada uma sejam explorados (BASDEN, 2002).

Ademais, utilizando a análise modal como ferramenta, o cristão e cientista da computação Derek Schuurman faz uma contribuição interessante ao estudo da computabilidade, campo que busca identificar os limites da computação. Embora as respostas clássicas a essa pergunta tenham sempre se dado por vias matemáticas, Schuurman argumenta de maneira filosófica: “[e]xplicar a realidade criada em termos de um aspecto modal resulta em reducionismo. No caso da computação, isso ocorre quando se tenta reduzir aspectos mais elevados ao aspecto numérico.” (SCHUURMAN, 2018, posição 972).

Conclusão

Fica evidente, portanto, que Atenas tem muito a ver com o Vale do Silício. O desenvolvimento moderno de software reconhece a necessidade de fazer abstrações da realidade a fim de manipular dados do mundo físico no “mundo digital”. O desafio que se segue para os profissionais de tecnologia da informação é o de aprofundar os pontos de contato entre computação e filosofia e, principalmente, explorar as implicações de uma filosofia radicalmente cristã aplicada a essa área.

1 Existe uma versão resumida, escrita pelo próprio autor, traduzida para português e publicada no Brasil sob o título No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico (DOOYEWEERD, 2018).


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Referências bibliográficas

BASDEN, Andrew. Aspect-Oriented Programming. Disponível em: http://dooy.info/using/aop.html. Acesso em 01 mai 2022.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. 1 ed. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. 276 p.

FREIRE, Lucas G. Diálogo & Antítese: textos fundamentais em religião e ciências humanas. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/content/uploads/Entidades-modais.pdf. Acesso em 01 mai. 2022.

SCHUURMAN, Derek C. Moldando um mundo digital: fé, cultura e tecnologia computacional. Tradução: Leonardo Bruno Galdino. 1 ed. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. E-book.