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Reflexões sobre o debate dos universais

Escrito por Filipe Dias de Souza, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


Introdução

Como devemos entender termos universais, tais como homem, animal e cadeira? Seriam esses termos apenas formas de linguagem ou teriam alguma correspondência na realidade, que informaria seu significado para além das convenções de uso? O debate acerca dos termos universais é bastante antigo na história do pensamento. É possível situar sua origem em Platão, mas foram os medievalistas quem, possivelmente, debateram mais intensamente a respeito da questão. Apesar de ser um tema antigo e muito associado ao período medieval, seu entendimento é relevante para muitos debates atuais.

Para o leitor pouco habituado a esse debate, é importante uma rápida contextualização. Existem muitas proposições para a questão dos universais, mas é comum resumi-las em dois grandes grupos: nominalistas e realistas. Por um lado, os nominalistas acreditam que apenas os entes particulares existem, sendo os termos que usamos universalmente apenas recursos de linguagem associados ao uso. Por exemplo, os entes concretos Sócrates e Platão são particulares. O termo homem, usado como designação genérica para ambos, não remete à nenhuma essência em comum. O termo é apenas a forma como se habituou chamá-los. Os realistas, por outro lado, creem na existência dos universais como entidades abstratas a partir das quais os particulares podem ser exemplificados. Nesse caso, os entes Sócrates e Platão seriam exemplificações do universal homem. O termo homem se referiria, assim, a uma realidade abstrata, fora do espaço-tempo.

Diante desse debate, é inevitável que nos questionemos sobre qual é a adequada visão dos universais a partir da Bíblia e da tradição cristã. Para respondermos a essa questão, devemos ser cautelosos. É necessário termos claro que as categorias a partir das quais o assunto é debatido não são categorias bíblicas. As Escrituras não usam termos como abstrato, concreto, ente, essência e substância, fundamentais para o debate dos universais. Contudo, isso não significa que as diferentes formulações da questão sejam indiferentes à Bíblia. “Toda a tese contém consequências e também elas têm de ser verdadeiras. Teses são muitas vezes rechaçadas não por si mesmas, mas por suas consequências” (PORTA, 2014, p. 40). Assim, o que propomos no presente ensaio é uma análise das consequências das principais posições acerca do problema dos universais e sua relação com a Bíblia. Não pretendemos, obviamente, ser exaustivos, mas cremos que seja possível fazer algumas reflexões que nos aproximem de uma posição mais saudável.

A destituição do absoluto pelo nominalismo

Para Moreland e Craig, nominalistas são mais frequentemente naturalistas (MORELAND e CRAIG, 2021, p. 313), pois existem certos pressupostos compartilhados entre naturalistas e boa parte dos nominalistas. Poderíamos dizer que os dois principais são: (i) toda a existência se limita ao espaço-tempo, isto é, só podemos considerar que algo existe se esse algo pode ser situado no espaço-tempo e (ii) a existência não tem propósito específico. Existe uma óbvia negação do absoluto nesses pressupostos, que nos leva a um relativismo e, eventualmente, se levarmos a sério as consequências desses pressupostos, a um niilismo1. Essa negação dos absolutos faz com que os termos universais tenham seu significado limitado apenas ao seu uso e se tornem, assim, completamente flexíveis.

É importante notar, no entanto, que os termos são importantes nas Escrituras e, com frequência, apontam para uma realidade, não podendo, portanto, ter seu significado reduzido às convenções culturais da época. Veja, por exemplo, como Deus é zeloso de seu próprio nome. Em Ex 20:3, lemos: “Não terás outros deuses diante de mim”; e em Ex. 20:7:“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão”. O termo Deus aponta para uma realidade suprema e, dessa forma, não deve ser usado para designar outras coisas, nem ser usado indiscriminadamente. Também não podemos usar qualquer termo para nos referir a Deus. Portanto, existe uma conexão entre o nome e a realidade que não pode ser reduzida à convenção da linguagem.

Para além do texto bíblico, o nominalismo traz consequências de interesse secular. Veja, por exemplo, o debate acerca dos direitos humanos universais. Existem tais direitos ou eles são sempre contingentes a uma cultura? Se a categoria “homem” é artificial, desprovida de essência própria e sempre sujeita ao seu uso, parece evidente que qualquer direito aplicado a essa categoria deveria estar sujeito a constante revisão. Torna-se impossível falar em termos absolutos dos direitos mais básicos e universalmente reconhecidos.

Onde está o abstrato? Os limites do realismo

Se, por um lado, os termos universais devem apontar para uma realidade, não devemos ser ingênuos em como isso se dá. É necessário reconhecer que a linguagem tem grande flexibilidade. Podemos observar nas Escrituras, por exemplo, como o termo sabedoria (hkmh, no hebraico ou sophia, no grego) sofreu alterações em seu significado. Em suas primeiras aparições no livro de Êxodo, seu significado está associado à capacidade técnica. Quando chegamos a Provérbios, o termo está intimamente ligado a Deus e sua manifestação se dá no modo prudente de viver. As alterações não apenas refletem uma mudança cultural e de uso, mas são também chanceladas pelas próprias Escrituras. A linguagem é dinâmica, novos termos surgem para designar o que não se conhecia antes, termos antigos passam a abarcar novos significados ou deixam de abarcar significados anteriores. Nas traduções, raramente temos uma palavra que possa ser usada como correspondência exata de um idioma para outro. O uso transforma o significado das palavras e isso é, muitas vezes, validado pela Palavra de Deus.

Diante desse cenário de dinamismo dos termos, podemos nos perguntar: a qual realidade os termos universais remetem? Tomemos novamente a palavra hkmh (sabedoria) como exemplo. Como podemos identificar a qual realidade ela remete? Como poderíamos identificar a essência da sabedoria? Nos realismos mais exagerados, assume-se que os universais são entidades abstratas que existem. Os particulares derivam dos universais, são cópias ou aproximações dessas entidades abstratas. Isso nos parece estranho, pois implicaria, por exemplo, na criação de uma humanidade antes da criação do homem. Essa ideia parece conduzir a uma espécie de misticismo que não condiz com as Escrituras e por isso cremos que deve ser rejeitada.

Não obstante, o realismo moderado resolve em parte essa questão. As entidades abstratas estão ligadas à nossa compreensão. Os particulares não são cópias ou aproximações dos universais, mas os exemplificam numa relação não espacial. Essa posição nos parece mais adequada, mas certamente não resolve o debate. Em primeiro lugar, poderíamos perguntar de que natureza é essa realidade que contém os abstratos. Ela abarca apenas as substâncias ou também as coisas-propriedades?2 Adicionamos algo a essa realidade abstrata quando criamos algo? Se sim, podemos dizer que o fazemos em termos universais?

Tomemos dois exemplos: homem e cadeira. São ambos universais no mesmo sentido? Ou seria o homem verdadeiramente universal por ter sido criado diretamente por Deus e a cadeira universal apenas em termos relativos por ser uma criação humana? Podemos ainda nos colocar diante de questões epistemológicas com relação ao realismo. Como podemos acessar essas entidades abstratas? Em que medida é possível conhecê-las? São questões bastante complexas e foge ao nosso escopo debatê-las. Contudo, achamos importante colocá-las para indicar o cuidado necessário que devemos ter ao assumir uma posição realista. Se não houver um adequado reconhecimento da limitação de nossa racionalidade, existe uma tendência a universalizarmos além do que nos é permitido. Transformamos nossa leitura da realidade na própria realidade.

Conclusão

Nos parece que qualquer posição mais extremada, seja no campo do nominalismo ou do realismo, tem consequências indesejadas, que não se alinham com um compromisso com as Escrituras. Os termos universais são categorizações essenciais para podermos direcionar nossas ações e pensamentos. São formas pelas quais organizamos nossa realidade e nos conduzimos nela. Como agentes do mandato cultural divino, nos é dada liberdade para criar e adaptar essas categorias. Isso, contudo, não deve ser feito de forma arbitrária. Quais seriam, então, os limites para nosso uso das categorias? Se considerarmos que os termos universais nos ajudam a organizar a realidade, deveríamos fazer com que essa organização nos leve a exercitar valores bíblicos, nos aponte para Cristo e não contrarie as categorias que a própria Bíblia nos dá. 


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1 Conforme James Sire em O Universo ao lado, o niilismo é filho natural do naturalismo.

2 Conforme utilizado por Craig e Moreland, as substâncias se referem àquilo que pode ser definido a partir de uma única categoria e que tem o todo dando significado às partes, como acontece com os seres vivos: homem, cachorro etc. As coisas e propriedades, por outro lado, são agregados de partes ou matérias, com que tem sua unidade definida por uma ideia ou projeto e artificialmente imposta, tal como acontece com os artefatos: relógio, carro etc. 


Referências Bibliográficas

BÍBLIA DE ESTUDO GENEBRA. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri, SP, Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo: Cultura Cristã. 2009. 1984 p.

HAHN, Paulo; TRAMONTINA, Robinson. O dilema entre o universalismo e o relativismo: a perspectiva da filosofia intercultural. In: XXI Encontro Nacional do CONPEDI, 2012, Uberlândia. Sistema Jurídico e Direitos Fundamentais Individuais e Coletivos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 6745-6771.

KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental: volume II, filosofia medieval. Tradução Edson Bini. 2. ed. São Paulo. Edições Loyola. 2012. 382 p.

LÍNDEZ, José Vilchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução José Benedito Alves. 3.ed. São Paulo. Edições Loyola. 2014. 268 p.

MORELAND, J. P.; CRAIG, William Lane. Filosofia e cosmovisão cristã. Tradução Sueli Silva Saraiva, Lena Aranha, Emirson Justino, Jonathan Silveira, Hander Heim, Rogério Portela e Leandro Bachega. 2.ed. São Paulo. Vida Nova. 2021. 1024 p.

PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do estudo filosófico. 4.ed. São Paulo. Edições Loyola. 2014. 174 p.

SIRE, James W. O universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. Tradução Marcelo Herbertes. 5.ed. Brasília – DF. Monergismo. 2018. E-book.