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Traduttore (non) traditore: um ensaio sobre a tradução

Escrito por Erlan Pereira Frade Tostes, estudante do Programa de Tutoria Filosófica – Turma 2021

INTRODUÇÃO

Se é possível hoje ler em língua portuguesa as obras escritas originalmente em outro idioma é porque alguém se propôs à árdua tarefa de transposição e adaptação de códigos linguísticos. Todo um universo cultural foi adaptado através de uma ponte imaginária composta por padrões equivalentes. Traduzir é reconstruir, restabelecer, mas sobretudo, interpretar. Seria possível, portanto, insinuar que o tradutor, em certa medida, é também filósofo? Este ensaio apresenta-se simultaneamente como uma ode aos tradutores e como uma proposta de reflexão da atividade missionária da Igreja de Cristo.

1. O CONSTRUTOR DE PONTES

O tradutor, ao aproximar conceitos de idiomas diferentes, constrói estradas cognitivas e democratiza o acesso ao conhecimento. Contudo, não é uma tarefa simples, pois traduzir envolve fatores linguísticos, comunicativos e culturais. O dito de São Jerônimo parece encaixar com o posto tradutório: “Labor durus est aggredere” (Trabalhe duro para [poder] atacar) [1]. A cada sentença, o tradutor sentencia. Há orações em que só lhe resta orar. A cada período, dúvidas periódicas. O professor da Universidade de Rovira i Virgili, Anthony Pym, ao definir tradução, assevera [2]:

“Por extensão, pode-se falar de “língua de partida” e “língua de chegada”, ou ainda, “cultura de partida” e “cultura de chegada”. “Traduzir” seria, então, um conjunto de processos que conduziriam à passagem (de textos, da língua, da cultura) de um lado para outro.”

Humboldt (1998) discorre sobre uma pretensa impossibilidade da tradução [3]:

“Toda tradução me parece simplesmente uma tentativa de resolver uma tarefa impossível. Todo tradutor está condenado a ser liquidado por uma de duas pedras de tropeço: ou ele ficará muito próximo do original, às custas do sentido e da língua de sua nação, ou ele irá aderir muito às características peculiares de sua nação , ao custo do original. O meio entre os dois não é apenas difícil, mas totalmente impossível.”

Desta forma, verifica-se a importância do tradutor. O propagador do conhecimento, edificador de pontes e, acima de tudo, destruidor de barreiras.

2. O TRADUTOR ATLÂNTICO

O Oceano Atlântico possui esse nome em referência a dois titãs da mitologia Grega: Oceano, filho de Urano e Gaia, e Atlas, filho de Jápeto e Ásia. Ao findar o conflito entre deuses e titãs, a Titanomaquia, o vitorioso Zeus condenou Atlas a sustentar o peso de todo o mundo em suas costas.

O ofício do tradutor também carrega consigo um peso homérico. Sua capacidade de escolha dos termos em sua tradução é real, porém deve ser atinada e respeitar todo um conjunto de regras. KLEIN (1992) afirma que “o que torna especial a tradução é o fato de o tradutor […] não ter a liberdade de colocar em palavras o que ele pensa, mas sim o que ele diz é pré-determinado em formas de palavras e orações, só que em outra língua” [4].

Nem todos se deparam com a boa fortuna de encontrar uma estrela em Roseta, com traduções e interpretações já decifradas [5]. Um pouco de perspectiva faz com que se valorize o trabalho de tradutores como Boécio e Dom Pedro II, que verteram grego e árabe, em latim e português, respectivamente [6]. Outro tradutor que merece destaque é o nestoriano Hunayn ibn Ishaq (809 d.C. — 873 d.C), em cuja conta estão a tradução ao árabe de mais de cem obras, incluindo Timeu de Platão, Metafísica de Aristóteles, o Antigo Testamento e diversos livros de matemática e medicina.

3. A ENCARNAÇÃO TRADUZIU

A doutrina da encarnação diz respeito de Jesus Cristo ter adquirido uma nova natureza – humana – e unindo-a hipostaticamente à sua divindade. A ideia transcende os limites da lógica, sendo sui generis em toda a história da humanidade. Críticos, tal qual Morris (1986), a rejeitam como “impossível, contraditória, incoerente, absurda e até ininteligível” [7]. Todavia, defender tal preceito é muito caro aos fundamentos do cristianismo e é fruto das resoluções da cristandade, sobretudo, ao concílio de Calcedônia (451 d.C.). Para os que creem no relato bíblico, não resta dúvidas da encarnação. É neste sentido que o evangelho segundo o apóstolo João afirma que “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” [8].

Se um tradutor é quem faz a mediação entre duas esferas culturais, transmitindo uma mensagem da primeira para a segunda, o quão apropriado seria acrescentar a Jesus Cristo o título de tradutor? Se o Verbo Divino pré-existia antes de se encarnar –  e a tradição cristã afirma que sim – então é possível afirmar que sua encarnação traduz seu ser a uma camada diferente da de origem, a saber, a material. Jesus traduz o ser de Deus aos homens de uma maneira experiencial. É natural ao filho que compartilhe de seu pai características ontológicas. Javé se anunciou a Moisés como o verbo conjugado na primeira pessoa: “Eu Sou” [9]. Jesus, seu Filho, é o próprio Verbo divino, tradicionalmente concatenado à legenda de “Segunda Pessoa da Trindade”. Esta sublime Palavra, em sua encarnação, tornou-se tangível, concreta e acessível à humanidade que com ela passou a coexistir no mesmo plano. O eco da frase “Jesus traduz” supera sua graciosa cacofonia e alcança implicações meta gramaticais. Um verbo que se auto-traduz torna obsoleta qualquer ferramenta de tradução, por mais avançada que seja. Não à toa, Ele é o “único mediador entre Deus e os homens”. [10] Jesus transcende a ideia de palavra gramatical e se torna o Verbo relacional. KUHN e TOMPKINS (2016) seguem este mesmo raciocínio ao associarem Cristo à tradução [11]:

“Cristo se torna e é a tradução de Deus em uma realidade audível, visível e palpável para a humanidade. Assim, Cristo não é apenas a realidade por meio da qual todos devem compreender a Escritura e normatizar toda a hermenêutica para compreendê-la, ele é também o hermeneuta por excelência.”

Ainda sobre a encarnação, Walls (1996) afirma que “por meio da encarnação, Jesus se traduz em realidade humana” [12].

4. A IGREJA TRADUZ

Missão é o motivo pelo qual determinada entidade justifica sua existência. Sem uma missão, qualquer organismo perde sua essência, seu fundamento, seu propósito. A missão prioritária da Igreja é anunciar o Reino de Deus na Terra. Este anúncio requer o uso de signos escritos, visuais, sonoros ou não-verbais. A tradução de uma linguagem celeste para o mundo material se faz necessária. SMITH (2003) traz uma perspectiva interessante sobre o tema [13]:

“Compartilhar a mesma cultura significa ter a mesma base categórica para organizar os conhecimentos. […] A linguagem reflete a maneira como certa cultura organiza a experiência.”  

O apóstolo João escreve em sua primeira epístola algo que neste contexto se torna um divisor de águas: “Ninguém jamais viu a Deus; se nós amamos uns aos outros, Deus está em nós, e em nós é perfeito o seu amor” [14]. Comunicar aberta e publicamente é essencial para se fazer entendido. A Igreja usa de sermões e pregações como forma de exposição e transmissão da mensagem do Evangelho, orientada ao cumprimento de seu chamado. Contudo, há um elemento crucial que não é alcançado apenas com a linguagem ou na emissão verbal: o exemplo. É através da prática do amor, passível de verificação, reprodução e assimilação que o Rei eterno, imortal, invisível, Deus único [15] se torna visível. Quem contribuiu no entendimento dessa necessidade foi Francis Schaeffer (1983) [16]:

“Se alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que aprenda a língua do país a que se destina. Mais do que isso, entretanto, faz-se necessário ele poder realmente comunicar-se com aqueles no meio dos quais viverá. Impõe-se-lhe aprender ainda outra língua – a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. É somente assim que conseguirá real comunicação com eles e a elas. O mesmo se dá com a Igreja Cristã. Sua responsabilidade não é apenas professar os princípios básicos da fé cristã, à luz das Escrituras; cumpre-lhe comunicar estas verdades imutáveis à geração em que se situa.”

É comum no meio tradutório que se diga que a nota de rodapé é o atestado de incompetência do tradutor, ou que todo tradutor é um traidor [17]. Schopenhauer é mais duro ainda ao afirmar que “toda tradução é uma obra morta” [18]. É bem verdade que a Igreja tem suas notas no rodapé sendo escritas a partir de sua pluralidade confessional, que manifesta diferentes traduções da mesma realidade. Entretanto, estendendo um pouco mais a metáfora, no capítulo sobre os fundamentos da fé, as milenares traduções amparadas pela ortodoxia confluem na escolha de uma única palavra: Jesus. Decerto pode-se subverter o ditado italiano em “traduzione, tradizione”, ou seja, para uma correta tradução, deve-se respeitar a tradição.

O mundo que outrora experimentou uma linguagem única, possui atualmente uma miríade de idiomas e uma população, que pode até não saber, mas anseia por um Pentecostes em que todos passem a ouvir uma mensagem centralizada de salvação, convergente em Cristo. Cabe à Igreja o papel de traduzir a mensagem [da] cruz a todos os povos. 


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5. REFERÊNCIAS

[1] HERBERT, P. E. Selections from the Latin Fathers with Commentary and Notes. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 1924, p. 71.

[2] PYM, Anthony. Explorando as teorias da tradução. Trad. Fernando Ferreira Alves e Victor Ferreira. Editora Perspectiva S/A. Edição do Kindle.

[3] HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluß auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts. Paderborn: Schöningh, 1998.

[4] KLEIN, W. Was kann sich die Übersetzungswissenschaft von der Linguistik erwarten?. In: Zeitschrift für Literaturwissenschaft und Linguistik. Vandenhoeck & Ruprecht, 1992, n. 84, pp. 104-123.

5] A chamada “Pedra de Roseta” foi encontrada em 1799 em Roseta, no Egito, por soldados franceses do exército napoleônico. Cunhado em sua superfície está o mesmo texto em três grafias: hieróglifos, grego antigo e demótico. A partir desse achado, foi possível decodificar os milenares hieróglifos egípcios.

[6] O romano Boécio (480 d.C.- 525 d.C.) pretendeu traduzir toda a obra de Platão e Aristóteles para o latim. Foi executado antes de concluir sua empreitada, porém, os filósofos posteriores, na Idade Média, foram agraciados com suas traduções. Pedro II (1825 d.C – 1891 d.C), regente brasileiro, era poliglota e como exercício em suas aulas de árabe, fez a primeira tradução das 1001 Noites para a Língua Portuguesa.

[7] MORRIS, Thomas V. The Logic of God Incarnate. Ithaca: Cornell University Press, 1986, p. 18.

[8] BÍBLIA, N. T. O Santo Evangelho Segundo João. In BÍBLIA. Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico Grego. 4. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 1104.

[9] ______, A. T. O Segundo Livro de Moisés Chamado Êxodo. In BÍBLIA. Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico Grego. 4. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 71.

[10] ______, N. T. Primeira Epístola do Apóstolo Paulo a Timóteo. In BÍBLIA. Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico Grego. 4. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 1262.

[11] KUHN, W; TOMPKINS, A. Theology on the Way: Hermeneutics from and for the Frontline. Journal of Adventist Mission Studies, v. 12, No. 1, Art. 2, 2016, p. 10.

[12] WALLS, A. F. The Missionary Movement in Christian History: Studies in the Transmission of Faith. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1996, p. 26.

[13] SMITH, F. Compreendendo a leitura. Trad. Daíse Batista. 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.

[14] BÍBLIA, N. T. Primeira Epístola Universal do Apóstolo João. In BÍBLIA. Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico Grego. 4. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 1312.

[15] ______, N. T. Primeira Epístola do Apóstolo Paulo a Timóteo. In BÍBLIA. Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico Grego. 4. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p. 1261.

[16] SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. Trad. João Bentes. São Paulo: ABU/FIEL, 1983, p. 5.

[17] “Traduttore, traditore” é um provérbio italiano cujo significado aponta para a ideia de que nenhum tradutor consegue manter o significado e a profundidade original do termo traduzido, sendo portanto um “tradutor, traidor”.

[18] SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Escrever. Trad. Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 150.