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Uma abordagem triperspectivista das missões transculturais

Escrito por Rebeca de Queiroz Batista, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Durante muitos anos, a evangelização de novos povos e nações foi feita de uma maneira impositiva e sem nenhum tipo de contextualização adequada. O diálogo com a cultura não existia e o cristianismo parecia estar cada vez mais distante da realidade dos povos alcançados. Os novos cristãos eram obrigados a encaixar suas vidas e práticas em um padrão pré-estabelecido de normas e regras. Com o passar do tempo, a igreja percebeu que esse tipo de abordagem não trazia um bom efeito a longo prazo. Pode-se notar, por exemplo, como essa abordagem impactou (e, infelizmente, muitas vezes ainda impacta) negativamente a evangelização de povos indígenas no Brasil. 

Com esse problema em vista, a necessidade de estudar cosmovisão, para entender e saber como lidar e adaptar a forma de apresentação do evangelho, foi se tornando necessária e presente nos estudos missiológicos. Esses estudos trouxeram grande impacto na evangelização e geraram muitos resultados positivos. Porém, é visto que, mesmo quando o estudo de cosmovisão é usado para auxiliar nesse processo, ainda é comum ser apenas para que um ponto de contato seja criado entre os envolvidos. Então, assim que o evangelho é apresentado, as mesmas regras e normas são impostas. Por este motivo, o presente artigo busca apresentar o triperspectivismo de John Frame como uma resposta que pode auxiliar para que a evangelização de povos e culturas possa ser efetiva na apresentação do evangelho, mas sem desprezar os outros aspectos que também são importantes (e precisam ser redimidos).

Triperspectivismo

Nosso conhecimento sobre a realidade é limitado e parcial. Essa limitação é causada principalmente pelo pecado, mas também por nossa imaturidade e finitude em relação a Deus. Por este motivo, John Frame (2010, p. 91)  propõe a união de três perspectivas que, juntas, auxiliam no processo de compreensão de Deus, do mundo criado por Ele e também de nós mesmos. Cada uma dessas perspectivas está relacionada a uma característica da Trindade. A perspectiva normativa refere-se à autoridade de Deus, tendo a Bíblia como expressão suprema de suas normas e leis. O controle de Deus sobre todas as coisas está ligado à perspectiva situacional e a presença pessoal de Deus (tanto transcendente quanto imanente) destaca a perspectiva existencial. Juntas, essas perspectivas, interdependentes, ajudam na compreensão e aplicação da verdade de Deus em todas as áreas de nossas vidas.

O triperspectivismo no contexto missionário

Nesse sentido, evitar que apenas um aspecto da realidade seja enfatizado ou absolutizado é extremamente necessário para cristãos que desejam responder fielmente ao chamado de Cristo de discipular as nações., visto ser comum vermos o aspecto normativo sendo priorizado em detrimento de outros. Em contrapartida, utilizar o triperspectivismo para auxiliar no equilíbrio das diferentes perspectivas pode ser um caminho para uma evangelização saudável e, principalmente, frutífera a longo prazo.

Não é incomum vermos igrejas e missionários que desejam impor mudanças culturais a novos cristãos apenas porque eles acreditam que sua cultura é mais “cristã”. Por este motivo, considerar a perspectiva situacional é de extrema importância no contexto transcultural, pois envolve não apenas conhecer a cultura do lugar onde se está, mas também reconhecer nela os pontos em que Deus já está trabalhando. Portanto, identificar e reconhecer elementos saudáveis da cultura, valorizá-los e usá-los como oportunidade de apresentar o evangelho de Cristo são pontos essenciais no processo de evangelização. 

O outro extremo, no polo oposto de desconsiderar totalmente a cultura, está em considerá-la em demasia, levando a uma distorção do evangelho. Neste sentido, a perspectiva normativa se mostra essencial, pois através dela é possível compreender e aplicar as normas e leis bíblicas integralmente, sem comprometer a base do evangelho. São nestes momentos em que percebemos quão importante é considerar as três perspectivas igualmente, para que não apenas um equilíbrio seja garantido, mas principalmente, o evangelho de Cristo não seja negociado ou adaptado de forma deturpada. Reconhecer que Deus é autoridade para todas as culturas, grupos e nações nos leva a evangelizar buscando redimir a cultura através do evangelho.

Por último, é necessário considerar o indivíduo como parte desse processo. Ao analisar uma cultura através da perspectiva situacional, é possível cair na armadilha da generalização, como se um estudo da população fosse suficiente para definir quem as pessoas são. Porém, é imprescindível considerar a perspectiva existencial nesse processo. Membros de uma cultura são, antes de tudo, seres individuais, e, portanto, é necessário conhecê-los individualmente.  Isso implica desenvolver relacionamento, compreender sua visão de mundo, seus desafios e sonhos. Isso implica gastar tempo com eles e considerá-los como seres importantes, criados por Deus para Sua glória. 

Conclusão

Em suma, considerar uma abordagem triperspectivista na missão transcultural pode trazer inúmeros benefícios, além de evitar diversos problemas que, a longo prazo, podem ser prejudiciais. Entender que Deus é autoridade sobre todas as culturas e que Sua Palavra é totalmente aplicável em todos os contextos nos permite expor o evangelho com ousadia, pois temos convicção de que ele é totalmente válido para essas pessoas. Da mesma forma, reconhecer o controle de Deus nos ajuda a enxergar que toda cultura é governada por Ele e possui aspectos que revelam a glória dEle. Por último, lembrar que Deus é presente entre nós nos ajuda a considerar o outro como um ser caído, mas criado à imagem de Deus que precisa, individualmente, ser alcançado pelo poder do Evangelho. 

Ao integrar as três perspectivas, podemos vivenciar uma abordagem equilibrada e, ao mesmo tempo, abrangente na missão, onde o Evangelho é pregado com fidelidade à Palavra sem que nenhum outro aspecto seja negligenciado.


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Referências

FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução: Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010. 446 p.